Pedra bruta: Acabou, Jennifer?
por Andréa Pontes

Janela, só se for a do Lô Borges
E o nome dela é Jennifer.
Com um n a mais do que a música de Gabriel Diniz (essa mesma que você pensou). Jennifer Castro, passageira de um voo que passaria ileso, porém, nos últimos dias ganhou um milhão de seguidores e a atenção da imprensa. O motivo: disse não a uma mãe com o filho em prantos. A razão do choro: a criança queria o lugar da Jennifer. A repercussão foi tamanha, que tirou os holofotes da tentativa do golpe militar; dos debates em torno do pacote econômico do Governo e da crise da Polícia Militar em São Paulo. Virou meme em todo o País.
Longe do viés do entretenimento – que, sabemos o quanto agrada a nós, brasileiros; bem longe das discussões psicanalíticas – não teria nem roupa para usar, o que mais me chama a atenção é o não. Palavrinha complicada. Ainda mais no mês de dezembro. É aquele momento que o combustível de 2024 já está na reserva. O caos entre não pode passar desse ano e fica para o ano que vem. Todo mundo já está exausto. E já sabe que 2025 será um seja lá o que Deus quiser.
E aí vem um basta. Um não ao abuso, a não pensar só no próprio ponto de vista. Não é não ganhou o Brasil para tentar coibir o feminicídio, o assédio por parte de homens a mulheres. O não a gente sempre teve. O problema é que não fomos ensinados a usá-lo. Alguns, sim. A maioria, não. Podemos recorrer ao grande Gilberto Freire, em ‘Casa Grande e Senzala’, da cordialidade excessiva do brasileiro. Podemos ouvir especialistas em Psicologia e Psicanálise para entender, principalmente as mulheres, a suportar tudo, a segurar as pontas.
Infelizmente, há um poder de atração incontrolável entre quem quer levar vantagem e quem deseja agradar. A boa notícia é que é possível ser Jennifer. Calmamente, pegar seus fones de ouvido e explicar que não dá para passar por cima de si mesmo. Um apenas pare a quem insiste na desigualdade, a quem não quer dividir, a quem empurra os outros ladeira abaixo para conquistar lugares, títulos.
Jennifer Castro virou ícone. Talvez por representar o que milhares de nós queremos dizer, mas não podemos, não devemos, não temos coragem ou ainda não aprendemos.
Quem sabe, não é uma janela para todos nós?
Pedra bruta: GPS no meio do caos
por Andréa Pontes

Segure firme o seu localizador de fatos reais em meio ao caos de opiniões
Os analistas financeiros – leia-se, mercado – fizeram uma aposta: o Produto Interno Bruto, o PIB, não passaria de 1,5%. A economia brasileira respondeu com o dobro: 3%. Ou seja, tudo o que foi produzido no País em bens e serviços dobrou a meta do que o mercado esperava. Quando o PIB cresce, sinal de que a economia está aquecida. Faça um teste: circule pelas ruas do seu bairro e repare se surgiram novos pequenos negócios, lojas, se há mais placas com vagas de emprego.
Então, fica a pergunta: por que o noticiário está repleto de ‘mas, porém, contudo, todavia’? Há o mercado, que reprova as ações do Governo. O noticiário chega a utilizar o verbo ‘despiorar’ no lugar de melhorar. E questiona — até quando? E as reformas? O Governo poderia ter gastado menos. E se experimentarmos o contrário? O Governo poderia ter reduzido mais os gastos, mas, em relação à pobreza extrema — brasileiros que dispõem de menos de 30 reais por dia — chegou a 27,4%. É o menor índice em 12 anos. São milhares de brasileiros melhorando de vida. Ou, ainda, o mercado clama por reformas, mas hoje o presidente Lula está no Uruguai. Não só para matar as saudades de Pepe Mujica (por sinal, estreia hoje Os sonhos de Pepe, documentário sobre esse homem, que trocava palácios do Governo uruguaio por chácara e até hoje simplifica o que é complexo para nós, mortais, entendermos, essa dinâmica do capitalismo e seus efeitos e interesses). Hoje, o Uruguai pode assistir a uma parceria entre Mercosul e União Europeia, algo muito ansiado na América Latina há pelo menos duas décadas.
Falando em interesses, política e economia andam juntas. Importante reparar. Já começam a despontar candidatos à presidência em 2026. A direita, por conta dos inquéritos da tentativa de golpe político que o Brasil sofreu, organiza-se, com Ronaldo Caiado e Gilberto Kassab. O Congresso está de mau-humor com a transparência solicitada por Flávio Dino, Ministro do STF, em relação às emendas parlamentares — as famosas “emendas PIX”, com quantias volumosas em municípios que você nem sabe pronunciar, sem sabermos por quais razões essas cidades receberam tanto dinheiro e outras não.
Falando no dia a dia, são tantos disparates que a gente se perde nas notícias. Ontem, uma cena de um policial militar de São Paulo jogando um homem de um viaduto. Na outra cena, um rapaz furta materiais de limpeza e é alvejado por nada menos do que onze tiros. Morre instantaneamente. No outro caso, um homem é morto por seguranças em uma estação de trem, em Carapicuíba, município de São Paulo. A carne negra é a mais barata, já cantava Elza Soares.
Fica a reflexão de que o mercado chia, e a conjunção adversativa, mas, aponta: imaginemos se a economia não tivesse melhorado, se a vida dos brasileiros não tivesse melhorado, seria pior essa desigualdade e ainda maior essa violência com quem tem menos. É preciso equilíbrio e, para isso, é necessário ceder. Há lados que ignoram solenemente tal verbo.
É o caos. Porém (a lindeza da adversativa), desta vez parece que deram GPS aos pobres mortais.
Trens cruzando o país: Você
por Raquel Azevedo

Vocês tinham combinado de assistir a chegada da maratona no Central Park. Acordaram tarde, bem mais tarde do que previam. Estava frio, mas não muito. Você foi na reunião do Weight Watchers, depois deu uma passada na Gap da Steinway, tinha se acostumado a ir experimentar roupa para ver se o tamanho tinha mudado. Bolsa de estudante, não era vida para compras. Ainda bem que experimentar era de graça e nenhum vendedor incomodava.
Você voltou para casa, viu que ele estava no banho e já tinha tomado café – quando você saiu ele tinha ficado na cama. A cozinha ainda estava uma bagunça e o quarto por arrumar.
O metrô era completamente zoado no final de semana, e antes de Google Maps não havia muito como planejar o trajeto. Vocês guardavam numa cestinha em cima do móvel da televisão o mapa do metrô e as tabelas de horário dos trens e ônibus que usavam mais – o F, o M, o N, o R, o M50 – mas não dava para confiar sempre. Para chegar lá tranquilamente vocês precisavam sair em no máximo quarenta minutos. A pressa não caia bem nele. Como tinha marcado com os amigos, certamente não ia querer perder a hora. Por algum milagre, em menos de vinte minutos vocês trancaram a porta da casa, sem discussão.
Aquele seria um ano de muitas primeiras vezes: a frase completamente errada em inglês na primeira conversa com a coordenadora do programa; o livro didático comprado na livraria da faculdade por um preço reduzido que já considerava a devolução, em bom estado, no final do semestre; a conta de estudante no Citibank; o ataque da louca no metrô; o MTV Awards no Lincoln Center; a enorme tenda branca do Ringling Brothers; Halloween Parade; o primeiro amigo grego-alemão oriental-palestino-tcheco; a amiga portuguesa com nome de princesa e o coração mais generoso que você já conheceu; o primeiro móvel da IKEA, uma escrivaninha; os primeiros filmes no Angelika e no Film Forum; e a primeira celebridade encontrada numa situação corriqueira (Samuel L. Jackson, na Barnes & Noble da Union Square).
Naquela manhã você ainda não sabia de todos esses primeiros. A primeira maratona, sim. A multidão na entrada do parque, muita gente sem saber para onde ir ou como fazer para ver uma brechinha que fosse. Caras conhecidas, por incrível que pareça. Ele reclama do frio e do atraso dos amigos. Você não corre, não liga para recordes, o que está fazendo ali? É um acontecimento, algo que a gente “tem que”, vai que um brasileiro ganha? Gritos, risadas, palmas, você está ali mas não está, ele explicando para o casal recém-chegado como tudo funciona.
Ele levou a câmera que vocês ganharam de casamento, comprou filme preto e branco, “o parque deve estar bonito, as cores mudando e coisa e tal.” Você o lembra que passa no parque todos os dias a caminho da faculdade. “Mas não com a câmera,” ele diz, e está certo. Ele pede que você pare para uma foto, as pessoas estão passando, algumas correm, vocês estão quase na altura da 66, perto do Tavern on the Green. Você concorda, faz a pose para não discutir, mas não tira os óculos escuros. A essa altura já te ocorria que talvez fosse melhor ter paz do que razão.
Um queniano chega em primeiro, seguido de um português, e uma mexicana é a primeira entre as mulheres, feito inédito nos vinte e nove anos da corrida. É quase como estar recebendo a medalha no pódio, que afinal vocês não chegam a ver. O grupo decide comer alguma coisa, no Upper West Side é tudo caro, descem a Sixth Avenue até quase as 40s, entram em um diner desses genéricos.
Você se senta à janela, cutucando com a unha a fita adesiva vermelha e laranja soltando do vidro. A conversa vai animada, pedem cerveja, você ainda toma Coca diet. Você observa o movimento, muita gente da maratona, os cobertores improvisados de um material prateado como o logo do Chase às costas. Tudo aquilo te parece surreal como vida, você em Nova York, uma tarde de outono quase inverno, a luz amarelada do sol já baixando atrás dos prédios, a Sixth Avenue, pernas à mostra, calçada cheia. Se uma cartomante tivesse feito essa previsão para você, com certeza teria recebido uma gargalhada como resposta.
A conversa sobe de tom, todos falando ao mesmo tempo, mas você só consegue pensar no galão de shampoo chique que comprou por uma barganha numa lojinha da Steinway. De repente vem uma intuição certeira de que durará mais do que a vida que você tem naquele momento. Será que não durou por ser um desconforto conhecido, ou porque era um conforto desconhecido? Ele foi um dos raros que, apesar de, estava lá. Enxergava e apontava o que você preferia ignorar ou esconder. “Olha,” dizia, “você vai gostar”, mesmo que sua reação instintiva (ou aprendida?) fosse virar para outro lado. Quando andaram de bicicleta juntos pela primeira vez, ele não escondeu o espanto ao constatar que havia algo que você não demonstrava cem por cento de segurança em fazer. Sem tripudiar, arrumou o assento e te ajudou com as marchas.
Você nunca foi de desistir. Você raramente jogava a toalha, ou admitia um erro. Muitas vezes te disseram arrogante, ali calada com um ar de superioridade. Na verdade, você não se sentia segura para dar palpite no assunto, mostrar que não sabia ou que gostaria de aprender. Nessa época não se falava em vulnerabilidade. Ou melhor, o bom era ser invulnerável. Daí a coisa de um ano você achará graça quando ele te contar o que cada uma daquelas pessoas disse sobre você. Afinal, sequer chegaram a te conhecer. Todos muito seguros em suas opiniões e diagnósticos, enquanto você só tinha mesmo agido de acordo com o “não!” que veio do seu corpo.
Você poderia ter corrido a maratona no ano seguinte. Como sua amiga alemã, você poderia ter dado à luz à sua primeira filha, ou conseguido um emprego de advogada estrangeira num escritório internacional famoso, como a portuguesa. Você poderia ter aplicado suas economias nas dotcom e perdido tudo, ou virado fotógrafa de rua em Nova York e inaugurado uma mostra no ICP. Você não fez nada disso. Você escolheu fazer casa no medo de se deixar conhecer.
Pedra bruta: 2024 já rasteja feito a serpente do Horóscopo Chinês
por Andréa Pontes

O ano da serpente
Todo ano, é a mesma coisa. Para mim, pelo menos. Resolver como vai ser o Natal e o Ano Novo – sempre aos 45’ do segundo tempo. Em 2024, não sei de você, mas as coisas foram muito mais intensas. Sob a ótica do noticiário, sobrevivemos. É golpe, é guerra. Temperaturas excessivas. Enchentes. Dengue. Incêndios. Atentados terroristas. A gente faz cara de nojo ao ver os programas de retrospectiva. Mas, a de 2024 está de parabéns.
Dizem que é hora de se reenergizar, fazer planos para 2025. No horóscopo chinês, 2025 será o ano da serpente. Dizem que os nascidos sob esse signo chinês são perspicazes e enigmáticos. O que exige reflexão e planejamento. E cuidado com o que é traiçoeiro e desonesto. Bom, até aí… novidade, novidade…
Ontem, estava em uma palestra em que foi feita uma alusão sobre começar 2025 igual a um avião na decolagem. O avião é levado e depois pega impulso até a pista de pousos e decolagens. Então, ele pega potência, no geral, entre 200 e 280 quilômetros por hora. Mas, pegar essa potência no fim de ano para começar 2025 é para os fortes. Geralmente, estamos pelos cantos, aos cacos, pedindo para o ano acabar.
Mas, faz certo sentido essa incoerência. Porque o ano termina e outro começa. Em uma simples contagem regressiva de 10 segundos. É tudo muito rápido. Quando nos dermos conta, no ano que vem, já teremos o Pará sediando a Cop-30; teremos o desfecho do inquérito do golpe, impactos para eleições 2026. Estaremos com mais calor, mais chuvas intensas. Ainda estaremos assistindo o Oriente Médio em guerra, a Rússia e a Ucrânia em guerra.
Pode piorar. Deve piorar.
O que fica, do alto da chamada idade madura, é o que temos por dentro. Continuo adepta de que dormir com a cabeça tranquila é o melhor presente; não fazer parte do time que odeia, que passa rasteira. Fazer parte dos que gostam de rir impunemente; de ter amigos; família. Comida na mesa. Ainda há muito a agradecer, nesse redemoinho bem caótico.
É tempo de tirar o que não serve mais – de roupas, a pessoas, a acontecimentos. É tempo de ser feliz com o básico.
Podemos melhorar. Devemos melhorar.