por Raquel Azevedo
Vocês tinham combinado de assistir a chegada da maratona no Central Park. Acordaram tarde, bem mais tarde do que previam. Estava frio, mas não muito. Você foi na reunião do Weight Watchers, depois deu uma passada na Gap da Steinway, tinha se acostumado a ir experimentar roupa para ver se o tamanho tinha mudado. Bolsa de estudante, não era vida para compras. Ainda bem que experimentar era de graça e nenhum vendedor incomodava.
Você voltou para casa, viu que ele estava no banho e já tinha tomado café – quando você saiu ele tinha ficado na cama. A cozinha ainda estava uma bagunça e o quarto por arrumar.
O metrô era completamente zoado no final de semana, e antes de Google Maps não havia muito como planejar o trajeto. Vocês guardavam numa cestinha em cima do móvel da televisão o mapa do metrô e as tabelas de horário dos trens e ônibus que usavam mais – o F, o M, o N, o R, o M50 – mas não dava para confiar sempre. Para chegar lá tranquilamente vocês precisavam sair em no máximo quarenta minutos. A pressa não caia bem nele. Como tinha marcado com os amigos, certamente não ia querer perder a hora. Por algum milagre, em menos de vinte minutos vocês trancaram a porta da casa, sem discussão.
Aquele seria um ano de muitas primeiras vezes: a frase completamente errada em inglês na primeira conversa com a coordenadora do programa; o livro didático comprado na livraria da faculdade por um preço reduzido que já considerava a devolução, em bom estado, no final do semestre; a conta de estudante no Citibank; o ataque da louca no metrô; o MTV Awards no Lincoln Center; a enorme tenda branca do Ringling Brothers; Halloween Parade; o primeiro amigo grego-alemão oriental-palestino-tcheco; a amiga portuguesa com nome de princesa e o coração mais generoso que você já conheceu; o primeiro móvel da IKEA, uma escrivaninha; os primeiros filmes no Angelika e no Film Forum; e a primeira celebridade encontrada numa situação corriqueira (Samuel L. Jackson, na Barnes & Noble da Union Square).
Naquela manhã você ainda não sabia de todos esses primeiros. A primeira maratona, sim. A multidão na entrada do parque, muita gente sem saber para onde ir ou como fazer para ver uma brechinha que fosse. Caras conhecidas, por incrível que pareça. Ele reclama do frio e do atraso dos amigos. Você não corre, não liga para recordes, o que está fazendo ali? É um acontecimento, algo que a gente “tem que”, vai que um brasileiro ganha? Gritos, risadas, palmas, você está ali mas não está, ele explicando para o casal recém-chegado como tudo funciona.
Ele levou a câmera que vocês ganharam de casamento, comprou filme preto e branco, “o parque deve estar bonito, as cores mudando e coisa e tal.” Você o lembra que passa no parque todos os dias a caminho da faculdade. “Mas não com a câmera,” ele diz, e está certo. Ele pede que você pare para uma foto, as pessoas estão passando, algumas correm, vocês estão quase na altura da 66, perto do Tavern on the Green. Você concorda, faz a pose para não discutir, mas não tira os óculos escuros. A essa altura já te ocorria que talvez fosse melhor ter paz do que razão.
Um queniano chega em primeiro, seguido de um português, e uma mexicana é a primeira entre as mulheres, feito inédito nos vinte e nove anos da corrida. É quase como estar recebendo a medalha no pódio, que afinal vocês não chegam a ver. O grupo decide comer alguma coisa, no Upper West Side é tudo caro, descem a Sixth Avenue até quase as 40s, entram em um diner desses genéricos.
Você se senta à janela, cutucando com a unha a fita adesiva vermelha e laranja soltando do vidro. A conversa vai animada, pedem cerveja, você ainda toma Coca diet. Você observa o movimento, muita gente da maratona, os cobertores improvisados de um material prateado como o logo do Chase às costas. Tudo aquilo te parece surreal como vida, você em Nova York, uma tarde de outono quase inverno, a luz amarelada do sol já baixando atrás dos prédios, a Sixth Avenue, pernas à mostra, calçada cheia. Se uma cartomante tivesse feito essa previsão para você, com certeza teria recebido uma gargalhada como resposta.
A conversa sobe de tom, todos falando ao mesmo tempo, mas você só consegue pensar no galão de shampoo chique que comprou por uma barganha numa lojinha da Steinway. De repente vem uma intuição certeira de que durará mais do que a vida que você tem naquele momento. Será que não durou por ser um desconforto conhecido, ou porque era um conforto desconhecido? Ele foi um dos raros que, apesar de, estava lá. Enxergava e apontava o que você preferia ignorar ou esconder. “Olha,” dizia, “você vai gostar”, mesmo que sua reação instintiva (ou aprendida?) fosse virar para outro lado. Quando andaram de bicicleta juntos pela primeira vez, ele não escondeu o espanto ao constatar que havia algo que você não demonstrava cem por cento de segurança em fazer. Sem tripudiar, arrumou o assento e te ajudou com as marchas.
Você nunca foi de desistir. Você raramente jogava a toalha, ou admitia um erro. Muitas vezes te disseram arrogante, ali calada com um ar de superioridade. Na verdade, você não se sentia segura para dar palpite no assunto, mostrar que não sabia ou que gostaria de aprender. Nessa época não se falava em vulnerabilidade. Ou melhor, o bom era ser invulnerável. Daí a coisa de um ano você achará graça quando ele te contar o que cada uma daquelas pessoas disse sobre você. Afinal, sequer chegaram a te conhecer. Todos muito seguros em suas opiniões e diagnósticos, enquanto você só tinha mesmo agido de acordo com o “não!” que veio do seu corpo.
Você poderia ter corrido a maratona no ano seguinte. Como sua amiga alemã, você poderia ter dado à luz à sua primeira filha, ou conseguido um emprego de advogada estrangeira num escritório internacional famoso, como a portuguesa. Você poderia ter aplicado suas economias nas dotcom e perdido tudo, ou virado fotógrafa de rua em Nova York e inaugurado uma mostra no ICP. Você não fez nada disso. Você escolheu fazer casa no medo de se deixar conhecer.