Pedra bruta: Respira, respira
por Andréa Pontes
uma imagem pra refrescar
Respira. Ar pesado. Fumaça. Vida louca.
Não é de hoje que comento que a Terra age conosco na base do ultimato. Ou a gente muda, ou a gente sai do planeta, definitivamente.
Há momentos que parecem não ter fim. Mal sabemos como damos conta. E, às vezes, não damos. E esquecemos de contar a nós mesmos. Está tudo bem.
Há o outro. E temos nós. Nos estranhamos. O tempo todo. A vida passa. É trem-bala. É preciso saber viver. A grande questão é que nos distraímos. Os perrengues. O noticiário. Ah, o noticiário, que nos faz acordar com influenciadores em prisão e nos faz dormir sem saber se a Ludmilla vai cantar no Rock in Rio.
A gente se ocupa demais com o que não dá certo. É verdade, que o não dar certo capricha. Outro dia, comentei com a Fal que a vida parece um trator desgovernado com Mercúrio surtado ao volante.
Então, há aquele momento na vida que é preciso parar. Simplesmente. Descansar. Dizer não para a rotina. Dizer sim ao que não mencionamos faz tempo.
Assim é a vida. Assim deveríamos ser nós. Mais leves. No entanto, andamos esfumaçados, pesados, irrespiráveis, esquisitos.
Respira. Liga o ventilador. Enche a bacia e o copo de água.
Mesmo que o mundo nos diga que está tudo certo para o fim dele.
Mesmo sendo sexta, 13.
Há de passar.
Pedra bruta: Números viram fumaça no país da guerra de notícias
por Andréa Pontes
Ontem à noite, o mundo quase parou para assistir Donald Trump e Kamala Harris. Kamala, debutando em debates. Trump proferiu o de sempre. O que chama a atenção é o bastidor da comunicação. Kamala treinou. E muito. Treinou em fusos horários diferentes. Trump, embora não seja oficial, também. Ambos simularam perguntas difíceis, preparando-se para o pior. Para, justamente, serem melhores. Algo bem normal no ambiente da comunicação. Algo muito estratégico, que, sim, define votos. Imediatamente após o debate, Kamala conseguiu o apoio de ninguém menos do que Taylor Swift, uma das mais famosas cantoras no mundo. São milhões de votos. Então, ser rápido, não perder a chance de se posicionar, sem entrar no jogo do adversário são fundamentais. A expressão facial foi um dos destaques e Kamala utilizou a ferramenta muito bem. Risos, mão no queixo. E isso afetou o oponente. Trump sentiu e foi notório como ele perdeu a estabilidade ao longo do debate.
Posicionamentos e modos de comportamento não são determinantes apenas nos Estados Unidos. Estamos recém-chegados do Dia da Independência. Um fim de semana para lá de quente, começando com a demissão do Ministro Sílvio de Almeida, na véspera. O Dia da Independência envolveu manifestação dos aliados ao governo federal anterior. Algo que exibiu desentendimento entre os próprios aliados. Rendeu cortes nas redes sociais. E a repercussão de que o evento foi mais esvaziado do que o anteriormente realizado em fevereiro deste ano. No entanto, ainda temos um mundo polarizado. É só ver o empate técnico de Trump e Kamala, entre Ricardo Nunes, Guilherme Boulos e Pablo Marçal, nas eleições municipais de São Paulo.
No meio desse noticiário sem paz, Flávio Dino, o ministro do Supremo Tribunal Federal, chama todos à realidade. Não é momento para votação para anistiar golpistas do 8 de janeiro. Não é o momento para ficar adiando votações da reforma tributária. O País está em chamas – literalmente. São 12 estados afetados. Um céu cinzento e esfumaçado ofusca os bons índices da economia. O setor de serviços cresceu 1,2% em julho. Só um aperitivo de uma economia que prevê um Produto Interno Bruto maior, apesar das conjunções adversativas do mercado. Até ele – o mercado – admite que as coisas vão bem e o ‘mas’ reside nos gastos do Governo.
A comunicação tem sido deixada de lado em momentos decisivos e tem decidido e muito outras situações. É importante demais ter atenção a isso. Ainda mais em um País que vai da prisão da influencer e advogada Deolane Bezerra a denúncias de assédio sexual chegando ao Palácio do Planalto. Isso porque, há exatos 23 anos, acreditávamos ter chegado ao fundo do poço com o ataque às Torres Gêmeas.
Aqui, definitivamente, não é terra de amadores.
Trens cortando o país: O pão, o futebol e as palavras
por Raquel Azevedo
Querida Carol:
Domingo acordei às 8:20 da manhã, depois de ter ido dormir um pouco depois da meia-noite. Uma vitória, claro, dormir oito horas seguidas sem interrupção a essa altura da vida. Não sei se acordei sozinha ou se fui acordada pelos gatos que, desde que decidi deixar a porta do quarto fechada, miam do lado de fora, em horários variados. Não fazem o menor segredo da insatisfação geral com a nova política da casa.
A última semana, ou melhor, as últimas duas semanas ou talvez três, têm estado atipicamente frias para agosto/início de setembro. Meu app do sistema de ar condicionado e aquecimento me diz que o ar condicionado foi acionado pela última vez no 28 de agosto. Mesmo assim, foi um único dia em meio a semanas que quase demandaram aquecimento. Veja, não estou reclamando. Detesto o calor, ainda mais diante da perspectiva de verões (e outonos e invernos e primaveras) cada vez mais quentes, mas é um tanto perturbador usar malhas na última semana do que tecnicamente é o verão no hemisfério norte. Ou, como aconteceu no domingo, ter vontade de ir à uma padaria que costumo frequentar no meio do outono ou final do inverno. Decido ir assim mesmo.
Dou comida para os gatos, solto a Tanguita no quintal e me mando para a tal padaria, deixando um recadinho para a adolescente que com sorte vai dormir mais algumas horas. Escolho o podcast para escutar no caminho. Vou de Foro de Teresina, sentindo que estou fazendo algo escondido – de quem? Parei de escutar depois do quiprocó da saída do meu crush e da reação da Piauí e quando voltaram com uma nova composição resolvi não prestigiar. Agora me sinto como se estivesse o traindo ou traindo meus princípios.
No “momento cabeção”, o NPTO recomenda um livro escrito a partir de um podcast na pandemia. “Agora, Agora e Mais Agora” foi feito por um historiador português, Rui Tavares. O nome me soa familiar, mas há quantos portugueses chamados Rui Tavares? Resolvo conferir o podcast na volta para casa.
Peço um capuccino com canela, um croissant e um muffin de chocolate e me sento no balcão. Apesar do frio, algumas famílias com crianças pequenas ocupam as mesas da área externa. Aparentemente não se conhecem, mas logo reparo que as crianças, meninas e meninos, usam o mesmo uniforme, aparentemente de uma escolinha de futebol. Um menininho de cabelos castanhos lisos entra correndo e abraça as pernas da mãe que faz seu pedido ao atendente: “Mamãe, mamãe, ela é do meu time do futebol! Hoje juntos fizemos um gol!” Ela sorri para o filho, mas não para a menina de rabo de cavalo que dá estrelas enquanto espera a vez de chegar no balcão. Nunca vou entender as relações por aqui, mas me alegro pelos times mistos, esperando que o espírito de parceria perdure quando crescerem. Não sei se aí no Brasil é assim – sua pequena joga futebol? Guardo o telefone para comer sem distrações – foi bom ter feito essa regra para nossa família. Antes de ir embora, pego dois pacotes do banana bread que me motivou a descobrir o lugar.
Entro no carro e me lembro do podcast. Coloco o primeiro episódio para tocar. É simplesmente sensacional. O amigo Rui começa explicando o nome, aparentemente contraditório para um podcast que trata de eventos históricos, ou, como ele descreve, “seis memórias do último milênio”, indo do século X até 1948. A parte histórica é fascinante, e escutei seis episódios em uma tacada só, mas o que me fisgou foi a história do “agora, agora e mais agora”. É uma expressão familiar, daquelas usadas por gerações e gerações, cujo significado às vezes se perde no tempo. Conta ele que sua bisavó materna, Carolina Tavares, depois de perder a fala por um AVC, recuperou a fala aos poucos, primeiro usando somente uma palavra, que servia para tudo, depois duas, e afinal uma frase inteira, “agora, agora e mais agora”. Como era a única da qual dispunha, passou a usá-la, com a entonação apropriada, para expressar todas as suas emoções: alívio, alegria, enfado, medo, preocupação.
Tive que parar o episódio nesta altura. Lembrei-me que algo muito parecido havia acontecido com minha avó. Materna, por acaso. Eu devia ter meus doze ou treze anos. Meus avós estavam ficando conosco enquanto reformavam o apartamento. Uma tarde algo aconteceu com minha avó, que tinha a saúde debilitada pela doença de Chagas, e ela perdeu a fala. Não me lembro se houve diagnóstico. Ela ficou um bom tempo sem falar e, quando voltou, foi também aos poucos, como a do Rui. Ela relutava, testava as palavras, e muitas vezes o que dizia não fazia o menor sentido para o queria expressar. Consigo até ouvir a voz dela me pedindo que apagasse os óculos quando queria que ligasse a televisão. Ela percebia a confusão e não conseguia fazer diferente, claro. Mais do que frustrada, eu a percebia angustiada, lendo nos seus olhos arregalados o pavor de que talvez nunca mais conseguisse encontrar as palavras certas.
Fazíamos de tudo para que ela se sentisse melhor. Eu e minha irmã, novas ainda, tentávamos, os corações disparados, adivinhar o que ela queria com seus pedidos inusitados, mas nem sempre acertávamos. A tristeza e a frustração se multiplicavam. O motorista, que já estava com eles há muitos anos, conseguia pegar a lista de compras que ela preparava e trazer tudo certinho, um alívio enorme. Minha mãe, que estava sempre com ela, logo se tornou a tradutora oficial. Não sei em que época do ano isso aconteceu, mas ali, no carro, pensando em tudo isso, senti muito frio.
A afasia passou. Ela conseguiu voltar a se expressar corretamente por escrito e, para além do que é normal com a idade, não voltou a confundir as palavras. Depois de tanto tempo (lá se vão quase quarenta anos), precisei da vó Carolina do Rui para perceber que em mim ficou a semente do medo de um dia perdê-las, também.
Pedra bruta: Maldades efêmeras, felicidades gritantes
por Andréa Pontes
De onde menos se espera, é aí que nada vem, mesmo. Que o Brasil vai do 8 ao 80 em segundos, a gente já sabe. Mas, há semanas que a coisa toda transcende limites. Assim como não há saúde que suporte mudanças abruptas do clima, não há saúde mental que resista. Se há uma dica possível nesta sexta-feira, véspera de um 7 de setembro que também promete rebuliços mentais, é se perguntar, sempre: esse fato interessa a quem? É aí que a gente se aproxima um pouco mais da verdade. E, em um ambiente digital de lacrações e cancelamentos, saber o que é verdade, o que é pseudoverdade é uma posição invejável nos dias de hoje.
O que é verdade é que o Brasil perde. Os números da economia estão bons. Nem o mercado sabe explicar – sou repetitiva sobre o quanto o mercado tem sido surpreendido. O Brasil e o mundo perdem há anos na desigualdade de gênero, no machismo, na misoginia e no preconceito racial. É algo que a maioria sai perdendo.
Muitos dos que sofrem não denunciam. Argentina tem um tema assim no momento. O Brasil, infelizmente, também. Quando se fala em crise, inevitavelmente pensamos em prevenção. Então, enquanto há casos assim, precisamos estar muito atentos. E aceitar, de vez, felicidade eterna precisa ser encarada de frente. Encarar que há dias longos demais, há situações tristes demais. Cansaço. Século XXI e temos que falar de dívidas históricas. É rançoso, mas precisamos falar sobre isso.
O descanso vem assistindo às Paralimpíadas. É bom demais ver brasileiros e representantes de outros países contrariando diagnósticos, estatísticas e julgamentos. Uma contramão bonita de ser vista, nesse julgamento virtual diário. A felicidade mais raiz.
Talvez seja exatamente isso, buscar o que está fora da ordem, do padrão da felicidade cansativa. E, contrariando as dificuldades, ganhar forças e vibrar mais forte pelo nos faz rir. Efêmera deveria ser a maldade.
Deveria ser.