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Quando acontece

Quando acontece uma coisa maravilhosa com você, é interessante, depois de passada a zonzerinha de felicidade que te treme os joelhos, observar quem te abraçou e te jogou pra cima, quem visualizou e não comentou.

Quando acontece uma coisa terrível com você (treta-monstro, internação), é interessante, depois de passada a horrorosa confusão, observar quem te mandou um beijo na testa, quem permaneceu em silêncio.

O passado, desde que não se viva nele para sempre, é fonte de boas informações, insights assustaodres e de revelações-que-nem-revelações-são-você-é-que-é-lerdinha-fabia.

Fiz sopa de abóbora, suco, uma caixa pra Suzi, uma caixa pro Iata e um envelope cor de laranja pra Nepomuceno. Fiz mingau, fiz minha cama e fiz uma carta bonita demais (cuja beleza nao será levada em consideração, nunca é), dolorosa e muito gentil, que seguiu pelo correio, como deve ser. Uma dessas cartas que prova que os abismos são vários, de muitos estilos, mas que você e sua capacidade de olhar diretamente pros olhos do espelho devem permanecer intactas, então é melhor fazer as coisas direitinho. E olha, ainda é quarta-feira, capitão.

Achei a foto do sanduíche com a taça de vinho ao lado e, na minha memória, estranha senhora insensata, o sanduba era só de queijo – impressionante como sempre me engano a seu respeito

Acordo de sonhos intranquilos em que me vejo transformada, não numa baratinha, mas na observadora da minha mais acachapante dor da ausência. Impossível voltar a dormir. Uso o que resta das madrugadas para gravar meu Matisse.

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Chá não me ajuda a dormir. Chá (infusão, exigiria meu doce Fabiano), ajuda a acalmar, a silenciar e a respirar, mas a dormir, não.

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Ricota batida com lasquinhas de azeitonas preta, alecrim, azeite, Coltrane – e o velho não está aqui porque sou sofisticada e sim porque meu coração está impreterivelmente partido. Aliás, se a academia me quisesse, meu doutorado versaria sobre o que comem os que tiveram o coração triturado. Coltrane no cardápio.

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Nos sonhos, Maria Xixi impreterivelmente me persegue, como me perseguiu nas redes sociais pouco antes do ocaso (lá deles) e é má comigo –, mas má padrão 3ª B. Sim, o apelido vem, também, daí. Ela rouba meu lugar no auditório, puxa meu cabelo, rouba minha caneta, ri do meu uniforme desconjuntado, reúne as outras meninas pra todo mundo tacar bola em mim depois que a partida de queimada acaba. Enfim. A escola foi um inferno pra mim, esses últimos não me foram fáceis e juntei tudo na minha cabeça para depois ficar contando sonhos em público, como se isso importasse a alguém.

Pobre Maria Xixi. Pobre eu. Presas, ambas, em meu estranho inconsciente, como se o problema fôssemos qualquer uma de nós duas, como se não fôssemos umas manipuladas da silva.

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Lembrei do (da? meu deus, eu sou analfabeta) vinagrete da casa do Paulo e da Ana. E linguiça assada em cima da mesa, direto da assadeira. Pãozinho. Tenho procurado por isso nos últimos anos, essa mesa simples, deliciosa, fácil de fazer (bom, fácil se você não for um especialista no corte miúdo e perfeito dos pertences da/do vinagrete como é a Ana). A noite em que conheci essa delícia foi terrível, terrível, cruel demais, mas a mesa estava linda, havia também pessoas boas ali e eu quase consegui manter a boca calada, então ficou quase tudo bem. Quase mesmo.

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Piquei quantidade inominável de alho para uma conserva cheia de adjetivos. Fiz parte no forno, delícia das delícias para esfregar num pão. Fazia tanto tempo, alecrim, tomatinhos, azeite, azeite, azeite. Mais alecrim e algum manjericão.

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Aliás, sei que me podes chamar e a música deveria acabar aí mesmo. Porque, sim, posso. Aliás, você, se tiver um espelho, também poderia chamar a si mesmo.

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Há, claro, maçãs. Maçãs no sanduíche, na salada, no iogurte que continuo, sim, fazendo em casa. Maçãs desidratadas no mingau. Criancinhas sorridentes pulam das páginas da história em quadrinhos para a embalagem das minhas maçãs – embalagem que acaba por aterrizar na sacola do reciclável. As crianças nunca param de sorrir.

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Algumas pessoas se especializam em fingir que não existimos.

Bem, alguma qualidade todo mundo há de ter.

Não era a Vanusa que tinha uma música falando a respeito das manhãs?

Trovões altos. Madrugada. Começou um chuvão aqui. Estou trabalhando nos textos de um aluno que terá aula às 8h. Os textos da menina das 7h estão prontos. Hoje não tenho aluno às 6h.

Depois do menino das 8h, infelizmente, só terei aula às 13h30. E depois 14h30.

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Eu queria ter mais e mais alunos de idiomas. A vida ficaria bem mais fácil com mais grana no caixa.

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Neste enorme intervalo, vou trabalhar no texto de autores (dois em particular) e nas aulas da semana que vem.

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Eu tinha uma conta numa plataforma antiga chamada Flickr. Muitas e muitas fotos. Estou baixando todas. Tem muita coisa. Muita coisa ruim, sou péssima fotógrafa. Adoro fotografar o miudinho de casa, sabe. Uma caneca, um colar sobre a colcha, um copo com gelo. Sou fascinada pelo miúdo, o doméstico, o todo dia. A vida de todo dia como tema para escrever e para fotografar. Adoro o cotidiano, o jeito que enfiamos os pés no chinelo, como cada um raspa a manteiga, o barulho da chuva quando estamos na cama, já acordados, e conseguimos ouvir cada gotinha separadinha das outras pingando do telhado na calçada.

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Tenho um arquivo só de fotos dele, várias e várias roubadas anos atrás, das redes sociais de outras pessoas. Ele num bar, feliz, abraçado na Luciana e na Renata, ele noutro bar, feliz, rindo ao lado dum moço cujo nome me escapa. Eu me pergunto se ele também vai embora dessas pessoas, desses bares, sem se despedir. Vocês não merecem meu até logo, adeus, ou se essa era uma desatenção só minha. Acho que não. Minha mãe me ensinou que raramente as pessoas são o que são só conosco. Geralmente elas são o que são e nós atravessamos o caminho delas. Enfim, dúzias de fotos dele. O arquivo se chama W. porque era assim que eu o chamava, antes de chamá-lo de C., antes de chamá-lo de D. Se agora me acho uma imbecil? Claro que sim.

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Eu queria um cachorrinho bebê. Há alguma coisa nos cães que me agrada demais. Gosto deles, de estar com eles, de falar com eles. Por mim, seria a velhinha maluca dos cachorros, teria uns quatro. Cinco. Eu sou muito louca e compulsiva, então preciso me controlar.

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Meu falecido marido (dia 27 de agosto fez dezesseis anos que ele morreu e a Raquel se lembrou e me abraçou), era a velha louca dos gatos. Em qualquer lugar que Alexandre estivesse, um gato viria até ele e ele o traria para casa e, não raro, arrumaria um lar pro bicho. Alexandre, eu costumava chamá-lo de a ONG de um homem só. Quando ele morreu, tínhamos sete gatos. Nem pergunte.

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Ontem comprei gorgonzola. Queijo caro, mas ei. Comprei. Porque gosto de comer gorgonzola com pera. Manias. Várias mesmo.

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O verão se insinua em São Paulo e eu odeio calor, odeio o verão, odeio acordar passando mal de calor, brotoejas, costas suadas, ter de passar o dia molhando a testa, dormir sem edredom. Adoro dormir com edredom, preciso dormir de edredom. Nossa, eu odeio o verão.

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Depois de eu implorar várias vezes, várias, ele vinha me dizer “mas eu pedi que você falasse pra mim que…”. Eu deveria fazer o quê? Copiar e colar todas as vezes que implorei (e, assim, implorar de novo), todas as vezes que ele, charmoso, disse coisas como “imagine, eu nem sou dar gelo nos outros, eu…”?

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Minha amiga que não ia mais se casar em novembro, vai, sim, se casar. Tenho uma preguiça imensa dessas cerimônias. Nunca nunca nunca quero ir. Mas irei porque em algum momento doido, no ano passado, aceitei ser madrinha. Não foi um momento doido, eu é que estava louca. Bêbada. Bêbada demais. Ela e o cara haviam desistido de casar há alguns meses, mas né, os hormônios nos levam a coisas bem burras, tipo se casar com um cara idiota demais.

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A chuva está barulhenta. Adoro.

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Vou fazer café. Mais café.

Um novo nome para um velho monstro

Tenho colado cacos, soprado dodóis, recebido notícias terríveis pelo telefone, procurado saídas, rotas alternativas, a tampa do alçapão, a porta de emergência, a escada de serviço, o escape pelo beco. Beco. Tenho gritado seu nome em silêncio enquanto acompanho seu desfile na avenida, com direito a evoluções para a plateia, tchauzinhos de miss, citações em estrangeiro, troca de passagens, escolha de adereços, organização da ala das baianas, gritos de gol. Gol. Tenho chorado com velhos vídeos do Adriano Diogo, tenho procurado o meu RG e recusado os mais variados convites porque não quero mesmo nada. Nada. Tenho ouvido seus trocadilhos idiotas, acompanhado a viagem do espresso da mesa para seus lábios, suspirado com sua risada e mastigado gelo, com fúria, com raiva. Raiva. Tenho marcado os dias, contado as horas, deplorado os minutos, como se meu tempo não fosse a coisa mais sagrada do mundo para mim, como se a espera fosse breve, como se eu não tivesse o que perder. Perder. Tenho escutado o Horace Silver, tenho trocado recados engraçados com a Gogol – ela me ensinou a gravar os recados, não preciso mais digitar. Di-gi-tar. Tenho comprado coisas das quais não preciso, tenho comido maçã verde com gorgonzola e me perguntado – porque não sei nada sobre você – se você gostaria. Gostaria. Tenho sentido sua falta, mesmo quando leio suas palavras e vejo suas fotos e testemunho sua felicidade de comercial e espero algum sinal, seu, do destino, dos astros, dos antros. Antros. Tenho me perdido e me encontrado, feito listas – algumas boas –, tenho arrumado gavetas metafóricas, forrado prateleiras reais com papel amarelo e solidão. Solidão. Tenho chorado escondido, tenho chorado na cara dos outros, tenho chorado por e-mail e no táxi, no chuveiro e na terapia, bebido muito café, cantado para o gato cinzento e cabeçudo, discado seu número sem completar a ligação. Ligação. Tenho procurado – em vão – por um novo nome para um velho monstro, tenho abraçado meu cão como se ele fosse desaparecer, dobrado roupas compulsivamente, organizado cabides para que fiquem virados para o mesmo lado e empilhado CDs, e tenho ouvido Salmaso no último volume, como se ela pudesse resolver tudo só porque a voz dela é linda e ela sabe respirar. Respirar. Tenho pedido fotografias de presente – como se as belas imagens alheias pudessem me consolar – tenho comprado pilhas e planejado comprar uma máquina fotográfica, tenho desejado morrer, tenho feito chocolate quente às três da manhã, tenho falado com os gatos como se eles me entendessem, tenho escrito para a Telinha, e evitado reler seus e-mails antigos. Antigos. Tenho sorrido um pouco, respondido que “não, não tem problema”, tenho sentido sua falta, tenho evitado seus olhos, usado seu apelido com outras pessoas, tenho feito maionese, planejado um novo cão, feito transcrição, pintado as unhas de cor de vinho. Vinho. Tenho recebido regalos, combinado bobagens, lido “A Luta Operária” com a Maloca, nadado com as cachorras do Char em uma piscina feita de verde, tenho gritado seu nome debaixo d’água e assustado peixes imaginários, tenho me punido, tenho me cortado, tenho fingido o jogo do contente, tenho tentado ser mais grega e menos este horror absoluto que sou, tenho relido os livros, aqueles, como se a história pudesse mudar. Mudar.

Tenho fingido que está tudo bem.

um e-mail de muitos anos atrás

O meu analista vai me dar um soco no nariz se souber que eu disse isso, mas olha: não preciso. Não preciso que você leia o livro (o que não significa que eu não queira). Não preciso que você queira receber um exemplar de papel pelo correio. Não preciso de longos e-mails cheios de histórias engraçadas, anotações sobre o cardápio do almoço de ontem, comentários sobre o metrô e o trampo, reclamações sobre grana e pulmões, análises sobre séries e gibis, descrições cruéis sobre o comportamento de nossos amigos naquele bar em Botafogo (o que não significa que eu não queira). Não preciso que você leia meu blog, de postagens diárias no seu blog, de likes e recadinhos engraçadinhos no meu (o que não etc.). Não preciso de dedicatórias em postagens.

Preciso, sim, mesmo, sim, de minúsculos sinais, luzinhas que piscam, dum “olá” geral e impessoal que eu invento dentro da minha cabeça que foi pra mim. E isso, olha, sempre tem.

Soco, não, meu analista vai tacar um cinzeiro de pedra na minha cabeça.

Eu nunca acho que você não liga, Preto, mesmo se, nalguma hora, por algum motivo, você não ligar.

Beijo,

Preta.

(eu realmente acreditava nisso. a vida é interessante demais. cruel. mas interessante.)

Vem cá, meu bem

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Águas Passadas