Pular para o conteúdo

Teve um tempo em que ele mandaria as fotos pra você. A fumaça do incenso, as lombadas dos livros. O tempo que ele precisava falar com alguém, qualquer um.

Ou seja, você.

Você não tá mais triste porque atingiu um ponto pralém da tristeza.

Nunca foi boa em entender recados. Ou nunca quis entendê-los.

Não tou bom, não quero me relacionar com ninguém. Mentira. Não quer falar com você. Tá falando com o Brasil e estendendo gentilezas para todos os continentes.

Comentando fotos, mandando beijocas e piscadelas. Tá retuitando, geral. Não você. Não curte uma foto sua. Jura? Não tá lá quando você precisa. Não quer estar.

E você aí na base do “nossa, recebi um trabalho, sua área, sua cara, acho que você vai gostar de ler”.

Idiota. Burra. Burrona, o clichê mais imbecil, mais óbvio, mais patético.

Se apruma, mulher. Pra ontem.

*

Rhinocerontidae

Os rinocerontes vivem, no máximo, quinze anos.

Permanência

Eu não me lembrava de você. Nem do seu nome, nem da sua biografia. Tinha me esquecido do seu cabelo, do seu cheiro, da sua voz, das suas mãos, da sua queda pelos tintos, da sua cara. Bom, eu não me lembro mesmo da cara de ninguém. Eu não me lembrava de você. Não me lembrava da faculdade que você cursou, essa parte é bem confusa para mim. Não me lembrava do samba-canção que você canta enquanto se veste. Do seu sotaque. Do seu hábito de encolher os ombros quando está cansado, mas não quer ir para casa. Da sua irritante rota de fuga, como se você tivesse, na memória, um mapa de todos os lugares e soubesse como sumir, de repente, tipo o Batman. Não me lembrava das suas piadas, das coisas que você gosta, dos seus filmes. Ah, os seus filmes. Eu não me lembrava das suas músicas, das suas fãs, da sua sedução grosseira e onipresente. De quando em vez me canso de brincar, você se cansa de fingir, mas também não me lembrava disso. De quando em vez, brigo com você dentro da minha cabeça, só dentro da minha cabeça, e falo um montão de coisas e me esqueço de você também e, de novo, só dentro da minha cabeça, porque cada centímetro de mim na verdade se lembra de você, minha pele se lembra de você, meus capilares se lembram de você. Mas, olha, não me lembrava dos lugares, das escadas, dos inventados “fica”, “não posso”, “telefonei pro cara”, “acho que o projeto sai”, “sua gravata, quem fez o nó, isso tá horroroso”, “a sua mãe, como está?”, “cadê o passaporte”, “a tradução não pagou”, “alugaram o apartamento?”, “fica em silêncio só um minutinho”, “tá saindo uma fumaça estranha da cafeteira”, “vê se o controle remoto caiu aí atrás do sofá, na bandeja ele não tá”, essa domesticidade impossível, inalcançável e inventada a cada instante, como se o mundo nunca fosse acabar, como se houvesse solução, como se. Não me lembrava de você, do mar em sua pele, da avelã – quase verde – dos seus olhos (pelamordedeus, Fal, que coisa cafona, apaga isso e vai pra chuva dar uma volta com o cão), das suas orelhas bonitinhas, dos pelos do seu braço, da sua queda pelo abismo, das teorias das muitas evoluções, do fim apoteótico (o meu), do despertar quando ainda é madrugada, do amor pelo Keaton, pelo Mendes Campos, pelos Verissimo (Pai, Filho, Espírito Santo), da sua capacidade de transformar o banal em maravilha, do livro usado de apoio para escrever o bilhete (“olha aí, marcou a capa”), da sua rara gargalhada, do seu horror à madrugada. Eu me esqueci, uma vez, de você, que se esquece de mim a cada vez que o ar deixa seus pulmões. Esvazio o cinzeiro antes de entrar em casa, lavo a louça que não tem fim, cozinho a mesma coisa de sempre, respondo ao recado da Suzi, abro o dicionário, não me lembro de você, procuro meus mentolados em cada canto dessa casa e encontro o maço todo mastigado e babado no ninho do putinho do Otelo, tiro a casca do ovo cozido, pedacico por pedacico, pelinha por pelinha, me pergunto como foi a cirurgia da Nina, resmungo com a Maliu que não tomou o remédio na hora certa, não me lembro de você, digo tchau pro Pedrão duas vezes na mesma noite, respondo mal ao e-mail mais grosseiro que já li na vida, leio a receita nova do chef Baumel, não me lembro de você, fotografo a capa do livro pro Instagram, roubo um bombom do pote, mando mensagens de voz para a Cam, boto Elvis Presley no último volume, escrevo outro postal pra Nepomuceno (que vai parar de falar comigo em breve), compro lençóis na Internet, brinco de pega-pega com o cãozinho fofo, mando vídeos pra Mariola, não me lembro de você, não me lembro de você, não me lembro de você, não me lembro de você.

Fiz iogurte e queria mesmo lhe contar e mandar fotos

Fiz iogurte.

Queria lhe contar porque, há muito tempo, li sobre você fazendo iogurte em casa.

Na época quis lhe dizer eu também faço iogurte em casa, mas passou, sei lá.

Ontem, tirando o pote de iogurte da geladeira, quase corri para o celular pra lhe mandar fotos e dizer Preto! Olha que lindo meu iogurte feito em casa!, mas não fiz.

Não fiz, porque você não quer mesmo saber e eu me cansei e me frustrei demais pra continuar tentando.

A tristeza é algo que carrego num dos braços. Isso me deixa só um braço livre pra fazer todas as coisas outras da vida.

Não existe pessoa no mundo pra quem eu quisesse mostrar meu iogurte além de você (que frase mais esquisita), então fiquei aqui, muda, comendo iogurte com amoras do meu quintal (hahahaha, a amoreira tá um espetáculo de carregada e linda).

Eu fiz iogurte, você não dá a mínima pra nenhum de nós dois, sinto saudades e você nem ler meu blog lê.

Tem dias que eu quase.

Tem dias, mesmo.

Depois me dou conta de como sou ridícula e daí eu paro.

Vem cá, meu bem

Repetir para Elaborar

Reclames do Drops

Rádio Drops

Piu Piu

[fts_twitter twitter_name=dropseditora tweets_count=2 cover_photo=no stats_bar=no show_retweets=no show_replies=no]

Instagram

[fts_instagram instagram_id=17841405821675374 access_token=IGQVJYOEVGYllBNkJDd3NXWFJMYW9YRllGN0FfaDdadjVvNnVIWWVrMkdLMnBrT1UySXVDVTVWZA01tQmlYbkszRTBnTUo1eTFhUHR3RFFfa3ZAVa3BQY05SeTZAma1JfbFpQZADZAaVEpB pics_count=2 type=basic super_gallery=yes columns=2 force_columns=no space_between_photos=1px icon_size=65px hide_date_likes_comments=no]
Águas Passadas