Acordo de sonhos intranquilos em que me vejo transformada, não numa baratinha, mas na observadora da minha mais acachapante dor da ausência. Impossível voltar a dormir. Uso o que resta das madrugadas para gravar meu Matisse.
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Chá não me ajuda a dormir. Chá (infusão, exigiria meu doce Fabiano), ajuda a acalmar, a silenciar e a respirar, mas a dormir, não.
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Ricota batida com lasquinhas de azeitonas preta, alecrim, azeite, Coltrane – e o velho não está aqui porque sou sofisticada e sim porque meu coração está impreterivelmente partido. Aliás, se a academia me quisesse, meu doutorado versaria sobre o que comem os que tiveram o coração triturado. Coltrane no cardápio.
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Nos sonhos, Maria Xixi impreterivelmente me persegue, como me perseguiu nas redes sociais pouco antes do ocaso (lá deles) e é má comigo –, mas má padrão 3ª B. Sim, o apelido vem, também, daí. Ela rouba meu lugar no auditório, puxa meu cabelo, rouba minha caneta, ri do meu uniforme desconjuntado, reúne as outras meninas pra todo mundo tacar bola em mim depois que a partida de queimada acaba. Enfim. A escola foi um inferno pra mim, esses últimos não me foram fáceis e juntei tudo na minha cabeça para depois ficar contando sonhos em público, como se isso importasse a alguém.
Pobre Maria Xixi. Pobre eu. Presas, ambas, em meu estranho inconsciente, como se o problema fôssemos qualquer uma de nós duas, como se não fôssemos umas manipuladas da silva.
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Lembrei do (da? meu deus, eu sou analfabeta) vinagrete da casa do Paulo e da Ana. E linguiça assada em cima da mesa, direto da assadeira. Pãozinho. Tenho procurado por isso nos últimos anos, essa mesa simples, deliciosa, fácil de fazer (bom, fácil se você não for um especialista no corte miúdo e perfeito dos pertences da/do vinagrete como é a Ana). A noite em que conheci essa delícia foi terrível, terrível, cruel demais, mas a mesa estava linda, havia também pessoas boas ali e eu quase consegui manter a boca calada, então ficou quase tudo bem. Quase mesmo.
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Piquei quantidade inominável de alho para uma conserva cheia de adjetivos. Fiz parte no forno, delícia das delícias para esfregar num pão. Fazia tanto tempo, alecrim, tomatinhos, azeite, azeite, azeite. Mais alecrim e algum manjericão.
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Aliás, sei que me podes chamar e a música deveria acabar aí mesmo. Porque, sim, posso. Aliás, você, se tiver um espelho, também poderia chamar a si mesmo.
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Há, claro, maçãs. Maçãs no sanduíche, na salada, no iogurte que continuo, sim, fazendo em casa. Maçãs desidratadas no mingau. Criancinhas sorridentes pulam das páginas da história em quadrinhos para a embalagem das minhas maçãs – embalagem que acaba por aterrizar na sacola do reciclável. As crianças nunca param de sorrir.
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Algumas pessoas se especializam em fingir que não existimos.
Bem, alguma qualidade todo mundo há de ter.
Se aquela pessoa estivesse fingindo que eu não existo, acho que meu coração ficaria menos dolorido. O que faz parecer que eu carrego um bicho do pé encravado na aorta é a sensação de que realmente sumi do pensar, do sentir, do lembrar. Comprei maçãs da turma da mônica, uva sem caroço e mamão hawai. pra combinar com o tanto que tenho me percebido miudinha. Não fiz conserva, até tenho tomatinhos cereja me espiando na geladeira mas não consigo organizar o dia para fazer nada decente. mas gastei horas me irritando com os participantes do reality Love is blind por serem tão ruins no que eu sou tão boa. ou era. no quesito sonhos, estou melhor, ontem sonhei que o Lula vinha comemorar a vitória, domingo, aqui em casa e eu ia preparar TCHANRÂ: linguiça. O que planejam comer os que trazem corações triturados: atum no gergelim, rúcula e batata doce. o que efetivamente comeram: salada de batata e ovo cozido.
que lindo texto.