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Não sei onde você estava

Não sei onde você estava quando esse desgraçado que foi eleito – eleito com o voto de tantos que conhecemos, amamos um dia, que muitas vezes entraram em nossas casas e beberam de nosso vinho – gritou o nome do torturador Carlos Brilhante Ustra no microfone duma das casas de leis deste país durante a vergonhosa votação de impeachment de Dilma Vana Rousseff.

Eu estava ao lado de minha mãe, presa e torturada durante o regime militar. Minha mãe que perdeu muitos, muitos amigos durante a ditadura militar nesse país. Sim, essa mesma doce criatura que tantas vezes lhe serviu vinho e lhe preparou macarrão ao sugo.

Tem gente aliviada com a noite de hoje. Tem gente feliz com a noite de hoje.

Depois de toda essa gente, venho eu.

2023 não será um ano fácil.

Tenho cá para mim que nunca mais viverei um ano fácil.

Mas todos os dias de 2023, haverei de me lembrar da noite de hoje.

Quando tivemos o anúncio oficial do resultado da eleição, depois da deposição duma presidente legitimamente eleita, depois de ameaças, depois de anos e anos convivendo com gente duma extração tão lamentável que mal posso acreditar, depois da miséria, pandemia, espancamentos, assassinatos, hino nacional cantado dum jeito nojento, bandeira nacional emporcalhada, depois de ter de assistir pessoas dantes queridas usando perucas verdes e amarelas na avenida Paulista que nem uns patetas, depois da fome, desespero, desamparo e até do coração esmigalhado debaixo de bota implacável, na noite em que o resultado da eleição nos foi dado, a noite de hoje, eu abracei minha boa mãe.

Era só isso mesmo.

Continuo atenta. Continuo aqui.

Pelo Char, pelo Fred, pelo pai da Fabi.

Mas principalmente por mim.

Caldo

Eu queria falar sobre a dor do que é contínua, definitiva, invariável. Sobre a dor do que se pode ter, não se pode ter, existe e não existe, como o gato na caixinha. Sem gradação. Sem alívio, sem começo ou fim, sem abinha para puxar, sem “ligue para o nosso SAC”, sem “abra o pacote na linha pontilhada”. Queria falar sobre a dor que está lá todos os dias, todos, esperando por você dentro das crocs brancas, esperando, e que quando você se senta na cama e desliza os pés para dentro delas, é tomada por aquela sensação de conforto, de morno, de reconhecimento, de enfiar os pés não nas crocs, mas nas crocs recheadas pela lama primordial da dor ininterrupta e, então, vem a lembrança. Então, cheia de dor da dor que a dor causa, você revive, antes de sair da cama, fazer xixi, escovar os dentes e amaldiçoar o dia, a lama de onde se arrastou ainda um organismo patético, sem rabo, sistema nervoso central digno desse nome nem cílios. Você, sim, veio dela, ainda um nada, sem pelos, sem conta no insta, sem caixa de anéis, meias na gaveta. Não tinha qualquer coisa a não ser dor. Você rastejou para fora do poço da dor para criar membros, andar de quatro, escalar árvores, andar de dois, aprender a matar tigres, simbolizar com sangue e suco de frutinha, registrar a vida, matar Aníbal, construir Paris, telefonar para a sua mãe, comer no coreano, torcer pelo time, checar o celular e parar de doer tanto, o que se mostrou impossível. Um caldo primordial de dor e desistência do qual jamais nos livraremos, era sobre isso que eu queria falar. Não tem perfume francês, shampoo recomendado pela blogueira, esponja esfoliante do catálogo da vizinha que nos afaste desse cheiro, dessa lama, desse pegajoso em nossa pele morta, da dor. Queria falar sobre os pequenos gestos impregnados de dor, os sorrisos dolorosos, as respostas rápidas e silenciosas no gerenciador de mensagens, ah, sim, o silêncio, o silêncio da dor, o silêncio, sua respiração, a respiração do gato, a lambreta que passa na rua, é silenciosa a dor, sempre, não há dor no barulho, ainda que ela exista em todas as partes (e não exista, como o gatinho na caixa), ela é silenciosa, fluida, adaptável, sorrateira, a dor. Ela não vai a lugar algum e viaja, rápida como a luz. Ela não vai a lugar algum. Você vai, em breve, ir é seu destino. Ela fica aqui, esperando por você, espreitando a mangueira na janela do carro ligado, o nó na corda, as pílulas coloridas, o despencar no abismo, o saco plástico, a pólvora, os cortes transbordantes, o gás. Não, não importa que você não volte, ela sabe que nunca mais a verá e não se aflige, porque você a verá todos os dias, sentirá a respiração dela sobre sua pele todos os dias, mesmo depois de morta, mesmo depois que tudo isso acabar, mesmo depois de sempre, mesmo com os carros voadores, teletransporte e Marte conquistado, a dor, a dor, mesmo depois de morta.

Aquarius

Aquarius, a série, acabou. Entendi entendi o motivo de não haver uma terceira temporada. Trata-se ali muito além dos crimes do Mason e seus parceiros de crueldade, muito além da vida nos remotos anos 1960, muito além da estranha vida que construímos para nós mesmos no começo dos 1970 (não é coincidência que eu seja dessa época, também sou muito estranha). Fala-se ali da vida que vivemos hoje. Aquarius, percebam os senhores, as senhoras, é sobre você, sobre mim, meu cão, minha calçada irregular, o bule de porcelana branca com mais de cem anos que quebrei essa semana, a indignação quase santa da Luciana Nepomuceno (cujo sobrenome não consigo pronunciar), suas orelhinhas de duende que vejo na foto dos outros, a trepada no meio da tarde, a luz do sol atravessando a cortina, nossos corpos e certezas, as coisas que não sabemos, mas a Flávia Penido explica, a chave do carro caída debaixo do criado-mudo, a necessidade predatória e kamikaze, que não nos fará bem algum, de dizer toda a verdade, meu choro em plena repartição pública, o medo – que é, na verdade, arrebatadora certeza – de jamais sermos suficientes, meu imenso amor por você, completamente desperdiçado e inútil, as aulas que a Mary W. dá na rede social e que são perdidas conosco, esse bando de imbecis que não a merecem de jeito algum, a linda tiara de flores e cristais da Suzi que eu, sinceramente, devia usar todos os dias só porque é bonita, o grau dos meus óculos que acaba de subir, a Andréa Espíndola me escrevendo no exato momento em que escrevo o nome dela nos agradecimentos do livro, o monstrinho que desenho em papel sulfite enquanto me iludo que o que tenho é uma carreira em construção, o texto novo do velho Nelson Moraes. Aquarius é sobre dor e solidão, sobre a loucura que nos assalta a todos, sobre as músicas que nunca ouviremos de mãos dadas, os passos que não podemos fazer recuar, os rostos de que não consigo me lembrar, as escolhas burras, burras (as suas, as suas), a violência que se retroalimenta, a Ângela me dizendo, cheia de razão, que essa toada de vereador me fode, a voz do veterinário na mensagem, a falta que sinto do meu irmão e que faz um buraco no meu coração que nunca vai sumir, o suco de limão, sua dupla negativa, o desamparo, os exames de DNA que não existem e não catam os bandidos, a igualdade que não vem para todos, a moça condenada a eternamente limpar a cafeteira, os militantes negros mortos no chão, os cigarros que não fumamos na juntos varanda – você não fuma, seu tonto –, as inúmeras formas que inventamos para morrer e amar, o final que se repete, o medo da queda, o alívio da queda. O alívio. Aquarius é sobre tudo aquilo de que não queremos falar porque a dor é insuportável, a vida breve, o tempo cruel e não tem CSI Miami que nos tire dessa encrenca. Estamos a salvo agora, nossa cretinice pode seguir quase despercebida, obrigada, não haverá terceira temporada de Aquarius, graças a Deus.

Um homem que tem seu nome

O homem de amiga que adoro o tem seu nome.

Então, eis que foram a amiga que adoro e o homem que tem seu nome comprar um sofá.

Durante sólida meia hora, fui coberta por narrativa mankelliana acerca de tecidos e seus predicados, molas ensacadas, encostos, almofadas, descontos e condições de pagamento.

Ouvi tudo, tudo mesmo, quase imóvel.

A cada vez que a amiga que adoro dizia seu nome o nome do homem dela meu coração dava um pulinho.

Tudo o que não sei enquanto asso mais um suflê para você

Bati claras em neve. É das coisas que mais amo. Bater claras em neve. Você não sabia isso sobre mim.

Pela primeira vez na vida eu não sei o que dizer. Sim, eu, a frasista. A “deixa eu tomar umas notas e preparar uma respostinha”.

Pré-aqueci nosso velho forno ao mesmo tempo em que fervia duas chaleiras de água.

O que dizer? Como dizer o que não sei dizer?

Enquanto esperava o apito (odeio esse barulho, outra informação para você), untei uma travessa de porcelana branca com manteiga e polvilhei com farinha de rosca (a tigela era do Alexandre, adoro – a travessa e, sempre, o Alê). Minha avó mandava (ela nunca pedia, nunca aconselhava) colocar a travessa untada na geladeira – cozinha é sempre um inferno de quente, ensinava a mulher que passou trinta e cinco anos sentindo os calores da menopausa.

Sei o que quero dizer. Não sei o que preciso dizer. Sei o que meu coração quer que eu responda.

Numa panela bonita (todas as minhas panelas são bonitas, faço questão, você saberia disso se me permitisse cozinhar para você), refoguei abobrinhas raladas e cebolonas picadas numa quantidade temerária de manteiga. Devagar, Devagar. Botei sal e alho. Sou dessas. Eu boto alho.

O que devo dizer? O que se espera que eu diga?

Transferi meu refogado cheiroso e lindo para a tigela da batedeira.

O que eu poderia dizer de modo a mão piorar tudo, não afastá-lo ainda mais da minha vida, não fazer ainda mais o papel de boba que venho desempenhando alegremente?

Eu poderia, antes disso, bater a abobrinha refogada com cebola no liquidificador? Poderia. Escolhi não fazer isso. Escolho sentir pedacinhos de comida na comida, sempre que possível.

Uma resposta ruim e burra é pior do que nenhuma resposta?

Peneirei farinha de trigo sobre a abobrinha com cebola e, então, liguei a batedeira. Devagar misturei leite e fui colocando ali as gemas, uma a uma e depois o queijo ralado.  Assim, devagarinho. Bem, bem devagarinho.

Uma piada? Devo fazer uma piada da qual ninguém rirá? Falar da série, outra série que jamais veremos juntos? Pedir para ver a foto da comida que ele preparou, do poncho costarriquenho (ou eu sei lá), dos pés dele sobre o capacho novo?

Quando minha massa estava bem misturadinha, desliguei a batedeira e, com uma colher de pão duro, incorporei as claras. Devagarinho? Sim. Devagarinho.

Devo não responder? Nenhuma resposta é melhor do que uma – mais uma, Fabia – das minhas respostas totalmente sem sentido?

As claras precisam ir se ambientando lentamente à comidinha, nunca batidas com raiva, com pressa, com desatenção.

Desde quarta-feira passo horas na frente da tela pensando no que devo dizer. No que é apropriado responder. Nada, sei a resposta, porque para que fique tudo bem que lê a resposta precisa querer que fique tudo bem. Precisa desejar.

Transferi o creme para a tigela que estava até agora na geladeira e botei a tigela dentro duma enorme assadeira de inox. Depois, lembre-se, devagar, despejei a água fervendo das chaleiras na assadeira.

Quero muito muito muito muito muito falar com ele de novo.

Com muito muito muito cuidado, levei a assadeira ao meu preaquecidíssimo forno-velho-de-guerra.

De novo. O que eu quero não importa.

Meu suflê demorou quarenta e cinco minutos pra ficar lindo e macio e dourado e incrível.

O que, o que devo dizer para que realmente fique tudo bem? Para parar de ser des-querida e ignorada?

Você não estava aqui, mas o cheiro era tão bom que talvez, só talvez, a fumacinha tenha percorrido os mais de quatrocentos quilômetros que ligam o Brócolis à Princesinha do Mar.

Eu só queria, mesmo, falar com ele de novo. Para sempre. Não de amor. Nunca de amor. Do tempo, dos meus sapatos novos. Dos quatro livros que escrevo ao mesmo tempo. Do calor infernal. Das coisas tão ruins que me aconteceram. Das boas. Das boas.

Talvez.

Pela primeira vez na minha vida, não sei o que dizer.

Vem cá, meu bem

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Águas Passadas