EDITORIAL
UM CEMITÉRIO EM NOSSOS OMBROS
Dizer que carregamos nossos mortos não é uma acusação. Bem, não deveria ser. Deveria ser o reconhecimento de uma totalmente natural sequência da vida.
Sim, carregamos nossos mortos. Você e eu.
Aceitamos a morte dos nossos e os identificamos e lavamos e pesquisamos e cobrimos e vestimos e beijamos e os tomamos em nossos braços e jogamos flores em suas sepulturas e amorosamente os depositamos na terra ou no fogo. Sim, é isso o que fazemos. Depois, continuamos a carregá-los seja qual for nosso rumo, sejam quais forem os desafios que nos aguardam.
Carregamos nossos mortos porque é isso que fazemos. É o que somos. Cada um de nós é a soma de todos os que vieram antes. Somos a soma de nossos mortos. Somos o que resta deles, literal e figurativamente. E o que restar de nós permanecerá nos outros. Somos os mortos que andam, trabalham, sonham, julgam e buscam. Somos nós os mortos que perdem seus mortos e esperam o dia de ser os mortos de alguém. Alguém vai nos identificar e nos lavar e perscrutar em nossas entranhas e nos cobrir, vestir e beijar. Alguém vai colocar flores sobre nós e nos tomar nos braços e amorosamente vai nos depositar na terra ou no fogo. E nosso corpo morto, depois de enterrado, depois de queimado, depois de pranteado, será carregado por muitas gerações, porque é isso o que fazemos. Em qualquer civilização. Há milênios e milênios, há eras. Aprendemos com nossos mortos, cantamos com eles. Nós os levamos a festas e os fazemos dançar. Temos, todos, a voz de uma tia, as habilidades de uma bisavó, as pernas de um avô. Carregamos nossos mortos porque é deles que somos feitos. Você e eu. Nossos mortos estão em todos os lugares.
Um dia você será o morto de alguém.
Um dia você será o morto de alguém.
Um dia você será o morto de alguém.
Será festejado, chorado e citado na mesa de uma porção de botecos (“A finada tia Fal é que tinha razão”). A leveza não nos alcança por carregarmos, ou não, nossos mortos, por carregarmos, ou não, um cemitério nas costas. A leveza nos alcança quando olhamos nossos mortos nos olhos e os identificamos e honramos e cobrimos seus corpos de flores antes de amorosamente depositá-los na terra ou no fogo. A leveza nos alcança quando olhamos nossos semelhantes nos olhos e reconhecemos sua dor. E os acolhemos e choramos com eles. E carregamos os mortos deles quando seus braços não podem mais.
Nossa leveza vem da coragem de contar nossos mortos e encarar a lista de nossos mortos e entender o medo dos que ficam.
Aquele que enterra ou queima o corpo morto e se esquece dele, não se esquece dele. Nunca, nunca. Não o deixa, não o abandona, não encerra um ciclo, não começa outro.
O ciclo só se encerra quando depois de enterrar ou queimar o corpo morto que cobri de flores, eu o tomo amorosamente em meus braços, admitindo a perda, a falta e a dor e o assombro e o carrego comigo para onde quem que vá, honrando sua memória, pranteando sua ausência, reconhecendo o buraco que ela abre em minh’alma, beijando meus doidóis, pedindo que você beije meus doidóis, amando a lembrança de quem se foi, transmitindo seus ensinamentos e esperando um novo dia com meus mortos, com meus vivos.
Fal Azevedo
Editora
Esta publicação é possível graças aos apoiadores da Guilda do Drops.
Aqui você sabe do que se trata e, sabendo, quem sabe decide fazer parte deste grupo maravilhoso:
A palavra é o que fica
por Fal Azevedo
Onde o verbo se faz carne
por Suzi Márcia Castelani
Black-tie, privacidade e um universo confinado
por Cyntia Menezes
Abra suas asas
por Lucas Pedroso
Joquenpô – plástico ou papel
por Tatiana Yazbeck
A arte não tem simpatia pelo humano
por Suzi Márcia Castelani
Rosa e vermelho
por Krysse Barros
Como limpar janelas de vidro
por Suzi Márcia Castelani
RÁDIO DROPS
Se você não cantar junto, aos berros, você morreu. Procure seu médico.
expediente
Editoras: Fal Vitiello de Azevedo e Suzi Márcia Castelani
Capa: Suzi Márcia Castelani
Colunistas: Fal Azevedo, , Tatiana Yazbeck, Krysse Barros, Lucas Pedroso, Cyntia Menezes e Suzi Márcia Castelani