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Tudo o que nós temos

por Andréa Pontes

Eu, Marcia Bortolanza e Cleber Rodrigues recebendo o prêmio VOL, por práticas de voluntariado.

A semana foi, mais uma vez, intensa. Uma sinusite, seguida de sinusite, levou-me, logo na segunda, ao médico. Sabe, aqueles médicos de cabelos brancos, que você ama? Eu tenho o Dr. Eurico para chamar de médico da família. No dia seguinte, tinha um avião para pegar até Beagá . O doutor me disse que tudo bem, um voo de uma hora não ia me matar.

Às 5h30, lá vou eu para a capital mineira, a pleno vapor – mesmo. Temperatura: 30 graus. Avião atrasa, porta do desembarque trancada. Perrengues chiques. Vou até Venda Nova, distrito ao nordeste de Belo Horizonte, almoçar com quem só conhecia pelas redes virtuais. Um almoço mineiro, com ensopado de quiabo, não quer guerra com ninguém. “Vou direto ao evento”. A amiga alerta: “mas nem ao hotel você vai antes?”.

Verdade. Para que essa acelerada?

Eis que a sinusite, otite e agregados cobraram a conta. Que cansaço. Vejo algumas mensagens – a gente não se desliga nem em uma folga rápida. Nota mental: preciso levar isso para o cantinho da reflexão.

Venço o cansaço e vou para o final do evento. Uma grata surpresa, aprender sobre economia viva, reconhecer que os caminhos do Terceiro Setor ainda são longos. Não mudaram algumas coisas desde que pisei, profissionalmente, na ONG Ibase. E tive a honra, com apenas 22 aninhos, de trabalhar com feras. Gente como Nádia Rebouças e Betinho. Ver praticamente a Ação da Cidadania nascer. Em pensar que a causa tem 30 anos e nunca deixou de ser atual. Nota mental: uma hora vou escrever sobre esse tempo ‘ongueiro’.

Vem o intervalo e me emociono com a Banda Sinfônica Comunitária, de Belo Horizonte. Ao meu lado, uma mãe, orgulhosa, filma os dois filhos. O Terceiro Setor ajuda. Ah, se ajuda. Volto e temos mais duas mesas importantes. Uma lembra o que poucos brasileiros sequer sabem. É possível utilizar o Imposto de Renda para ajudar causas. Pessoas físicas ou jurídicas. Em outra, uma ação de gigantes. Advogados voluntários ensinam Direitos Humanos, o que é uma infração, como olhar um contrato de trabalho, o que é cyberbullying. O Terceiro Setor nos ajuda a sonhar. Quantos episódios macabros de bullying e de mortes por conta de preconceitos poderiam ser evitadas? O pessoal do Direito na Escola luta para ser uma realidade em todo o Brasil. Tomara.

E aí, vem a premiação. Eu não sei o que dizer por ter uma atividade voluntária reconhecida. Um simples ato de tentar levar o Belo para a vida de pessoas, muitas vezes desconhecidas. Que franzem a testa e não entendem o porquê de uma baixinha morena fica oferecendo arranjos florais, em copinhos de doce de festa, com esponjas molhadas e crisântemos e tuias espetados. Como assim, doar? De graça?

Essa inspiração vem de Mokiti Okada, um japonês incrível, que deixou uma série de legados. Entre eles, o que considero a mais simples atitude de vida que a humanidade, se a seguisse, estaria em outro patamar, como diria Bruno Henrique, do Flamengo: se você quer ser feliz, faça o outro feliz. Pense, só, se você disser obrigado, por favor. Pense se você receber agradecimentos. Por pegar um copo de água e oferecer a alguém com sede; por lavar a louça para ajudar alguém exausto após um dia de delegacia (cheio de BOs). Um lenço para quem chora, a exemplo do personagem de Robert de Niro, em Um Senhor Estagiário.

Mokiti dizia que onde há flores, o ambiente é outro. Afinal, estamos falando de Natureza e Universo. Que até em prisões, se elas existissem, as coisas seriam melhores. Nessas andanças, sozinha ou acompanhada de familiares e amigos, descobri que há uma exclusão desse contato com as flores. Na verdade, é uma exclusão de árvores, de comida, de mobilidade. No meu quadradinho humilde das flores, cansei de ouvir de crianças e adultos em periferias: “posso tocar? É de verdade?”. O que pensar de um mundo – em que o que deveria ser para todos não o é? O coração aperta demais.

Com a voz já rouca, de tanto sair e voltar para o calor mineiro, finalizei a terça-feira.

Pois é, nem cheguei à quarta-feira. Consegue me acompanhar mais um pouco? Prometo não me alongar.

A comida chinesa da noite não caiu bem e a noite foi de movimentos peristálticos. Naquela ressaca, opto pelo táxi, porque a diferença para o aplicativo não era aquilo tudo. Boa escolha. Há corredor na capital mineira, um alívio em qualquer grande cidade – a fuga do trânsito. Ainda mais com um voo para pegar. O motorista me oferece pastilha e me conta que ajuda moradores de rua. Falamos do cenário desigual crescente e nos encorajamos – mutuamente – a seguir.

Na quinta, comecei o dia lindamente, acompanhando a história de uma mãe de uma criança com síndrome rara, que se une para dividir a experiência para ajudar outros pais. A sexta já foi longa, de reunião a vinho – o que me fez atrasar a coluna. Nota mental: os pratos caem e está tudo bem. Conscientize-se disso.

Há milhares de nós, por mais que o mal pareça vencer diariamente. Por mais que mau-caratismo e tantas notícias que mal damos conta. Chega a ter ranking mental… “estava de olho em Gaza, nem vi os ônibus queimados no Rio de Janeiro”. Mas, há notícias silenciosas, invisíveis, de gente a exemplo do motorista de táxi, da mãe da criança com síndrome rara.

Tem perrengue. Tem BO. Tem notícia ruim. A otite, a sinusite, a conjuntivite, a faringite. Tem a barbárie.

Mas, a gente precisa insistir em viver do jeito certo. No conta-gotas, no copo de água, no “muito obrigada, por favor, com licença, posso ajudar?”. Em uma flor a um desconhecido. Em uma hora de aula sobre Direitos Humanos a adolescentes. Em um “bom dia” a um morador de rua invisível.

Precisa.

Não me recordo de uma que não foi. Nota mental: preciso levar isso para o cantinho da reflexão.

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