por Raquel Azevedo

Querida Carol:
Tenho certeza que era fevereiro porque estava frio, escurecia cedo e eu estava presa em casa estudando para o Bar Exam. Em 2001 a internet não era nada perto do que é hoje, mas em alguma altura de uma tarde entre apostilas e Hotmail eu soube que o Herbert Viana tinha sofrido um acidente de ultraleve. Ele estava em coma, em um hospital do Rio, e sua esposa, uma inglesa chamada Lucy, que era alguns poucos anos mais velha do que eu, não sobreviveu. Deixou três filhos que certamente não faziam ideia que, naquela manhã de verão, tinham beijado a mãe pela última vez. Eu estava ali, imersa naquela maçada que era o Bar, milhões de simulados com perguntas inúteis sobre coisas como a rule against perpetuities, que não servia para mudar a vida de uma pessoa que fosse. No interest is good unless it must vest, if at all, no later than 21 years after some life in being at the creation of the interest. A partir daquela manhã, Lucy não podia mais ser considerada uma life in being.
A mesa redonda de pinho desbotado, a toalha puída, cor de goiaba com quadriculado bege, os ladrilhos brancos rachados no canto da cozinha, que era sala de visita e sala de jantar também. As janelas que davam para uma parede de tijolos vermelhos e um pátio vazio e sem propósito entre vários prédios, coberto de dejetos de pombos. Eles, esses ratos alados que não se cansavam de dar rasantes na janela ou arrulhar em cima do aparelho de ar condicionado, continuavam voando. Lucy já não respirava. Nunca iria ver os tijolos, reclamar dos pássaros. E eu me irritava com múltipla escolha e regras de transmissão de propriedade criadas por um rei da Inglaterra, muitos e muitos reis atrás. Os filhos de Lucy choram pela mãe e ela não vem. O pai dos filhos de Lucy está inconsciente, entre a vida e a morte que levou a esposa. Pode ser que ele nunca mais ande. E eu com preguiça de fazer almoço porque o fogão é por indução. Mortos não são preguiçosos. Não podem se dar ao luxo. Será que algum dos filhos se parece com ela? Será que já voaram juntos de ultraleve? Será que sabem que Lucy não vai voltar? As perguntas se alternavam na minha cabeça, entre uma e outra questão de múltipla escolha. Para elas, não havia resposta no final do livro.
Pelo resto daquele fevereiro estudei todas as manhãs, tardes e noites. Não por mim, mas por Lucy. E por Herbert e pelas crianças, de quem hoje nem me lembro o nome. Se o Paralamas podia voltar a andar, se um filho podia crescer sem uma mãe, eu tinha que dar conta de entender o que é um easement appurtenant. Eu devia isso à Lucy, que já não tinha escolha. Esse pensamento martelava na minha cabeça todos os dias, talvez por mais horas do que a matéria que precisava estudar.
Chegou o final do mês e a prova. O resultado levou meses para sair. No final não passei. Perdi por coisa de cinco pontos. Não consegui trazer Lucy de volta, nem consolar as crianças que em um instante ficaram sem a mãe, nem dar conta de uma prova que ao fim e ao cabo era só decoreba, só servia para ver se macaco sabe fazer cruzinha.
Lá se vão anos demais, os filhos já devem ser adultos, o mais velho pode até ser pai, Herbert avô, não sei. Acabei passando quando tentei de novo em 2006, desta vez por mim mesma, sem incomodar Lucy ou sua memória. Daqui a pouco chega outro fevereiro, Lucy já não faz cafuné no menino, já não pode ser considerada uma life in being há um quarto de século.
Agora quem está no hospital é você, há quase um ano exatamente, mas quem conta o tempo e a história é seu marido, sua família, nós, os amigos. Enquanto o relógio gira, você tenta recuperar a vida e a pessoa que foi, doendo pela pessoa que agora é, para seu bem, de seu marido e para sua pequena, que faz anos em fevereiro.
Não acredito em horas, nem em anjos, nem em Deus, mas coloquei um alarme para tocar todos os dias às seis da tarde. Paro tudo e converso mentalmente com você por alguns minutos, enquanto Maria Bethânia canta Toda beleza que há. Talvez deva conversar com Lucy também. Ela sabe o que é uma mãe que anseia por seus filhos e sua vida, mesmo sem fazer ideia do que é uma perpetuity.
Raquel, me levou a pensar profundamente em mim no papel de mãe….
Nao e? Olha que nessa época nem me passava pela cabeça. Obrigada por estar aqui.
Emoção me tomou ao ler seu texto. Obrigada!
Sempre feliz de saber que voce gostou, obrigada!