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Trens cortando o país: Eco

por Raquel Azevedo

Querida Carol, não sei exatamente como se deu a evolução da ortodontia, mas fato é que hoje em dia praticamente todas as crianças usam aparelho em algum momento de sua infância ou adolescência, ou às vezes até nas duas fases. Aqui estamos às voltas com essa etapa, e ela me pediu para contar como foi para mim, “na minha época”.

Minha experiência ortodôntica foi dolorosa. Depois de achar que tinha escapado do maldito aparelho, ali pelos 16 anos, idade em que todas as pessoas do mundo já tinham se livrado dele, fui surpreendida pela recomendação do meu dentista para que consultasse um especialista. Ele me atendia praticamente desde que nasci, mas só a essa altura percebeu que minha arcada se curvava para dentro na altura dos molares e, apesar de não ver prejuízo à mordida, era possível que eu “ficasse encovada quando velha” por conta dessa conformação. Profissional competente e de confiança, não tínhamos motivos para questionar sua sugestão.

Minha mãe me levou em três especialistas diferentes e no final, por recomendação de uma minoria formada por um único dentista, que descobrimos mais tarde nem ser ortodontista, ficou decidido que eu ia colocar o tal aparelho fixo. Meus protestos pouco adiantaram — o medo de um possível arrependimento futuro selou a questão. Afinal, era mais fácil acreditar que em trinta anos teríamos carros voadores do que adultos usando os malfadados ferrinhos no dente. Deu para ouvir a música da Alanis? Pois é.

Tomada a decisão, fui eu para o tal tratamento. Nem me dava ao trabalho de disfarçar a má vontade com a situação. Meus dentes sempre foram muito juntos, e para abrir espaço para a argola que prende o arame do aparelho tive que ficar por vários dias com um pedaço de ferro entre os últimos molares. Coisa de tortura medieval. Não sabotei o processo ativamente, ao contrário de um dos meus primos, que, reza a lenda familiar, arrancou o aparelho com alicate, mas a força do meu ódio fez as pecinhas se soltarem dos dentes mais de uma vez. O que acabava sendo pior, porque exigia novas visitas ao dentista, que logo apelidei de Dr. Sai-Azar.

O consultório ficava ali no Edifício Acaiaca, em frente à Igreja de São José. Aquele odor tradicional de dentista, uma única cadeira bem antiquada, cuspideira de metal, parede azul-calcinha, nem secretária tinha, tudo muito asséptico e sem graça. Ou talvez (des)colorido por minha irritação. Não era um andar muito alto, mas a janela, daquelas de vidro quadriculado, estava sempre aberta, o barulho do Centro me lembrando que lá fora a vida seguia. Mais tarde soube que havia um abrigo antiaéreo no prédio. Tivesse a oportunidade aparecido, certamente lá atracaria o Dr. Sai-Azar. Fui uma adolescente muito hábil, quase uma MacGyver, depois te conto mais.

Entrava muda e saia calada — acho que nem boa-tarde me dignava a dar ao sujeito, tão bem humorada quanto as carrancas do prédio. Uma vez por mês levava o cheque da minha mãe e saia com o calendário preenchido com as próximas visitas. Pelo menos o ponto do 8901 era praticamente em frente ao prédio e a livraria que vendia os livros da Aliança Francesa ficava no pilotis, o que garantia uma distração quando eu chegava muito antes do horário da consulta ou quando acabava na hora do rush e não queria pegar ônibus lotado.

O tratamento deve ter durado coisa de oito meses. Tenho um dente em posição invertida que ele queria consertar, mas aí já seriam mais seis meses de consultas, que não eram baratas. Como não havia prejuízo funcional, achei por bem dar aquilo por encerrado e minha mãe não questionou. A única coisa boa que guardei do Dr. Sai-Azar, resultado de uma conversa sobre literatura numa das poucas vezes em que abri a boca para além do minimamente necessário, foi seu exemplar do Pêndulo de Foucault, que tinha acabado de sair à época e ele me emprestou muito animado. Por vingança nunca devolvi, acredita? Às vezes sou mesquinha assim.

1 comentário em “Trens cortando o país: Eco”

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