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Trens cortando o país: Aqui

por Raquel Azevedo

Querida Carol:

Ontem perguntei à uma amiga muito sabida como não ter medo do futuro. Joguei a pergunta no meio da nossa conversa sobre máquinas de café como uma granada, a voz tremida e fina, já engasgada de lágrimas. Juntas, concluímos que, na verdade, o que dá para fazer é estabelecer uma convivência minimamente tolerável com ele, ou um “truce” regulamentar (não consigo no momento achar a palavra em português).

O medo está aqui; ele pode até não ser real, mas é poderoso. Eu me lembro de quando era criança e fechava os olhos para dormir na escuridão do sítio do meu avô. O medo no início era um pontinho preto no caleidoscópio da minha tela mental que ia aumentando, aumentando e aumentando até tomar conta dos meus olhos, minha testa, meu rosto, meu corpo, minha cama, do quarto, do sítio, do mundo. Nessa época, às vezes ele se disfarçava de um doberman preto feroz, o Plink; outras vezes era o “Lobizo”, lobisomem encarnado por um dos meus primos mais velhos para assustar as primas pequenas. Mais tarde, teve a cara da professora de química, da doença incurável da minha avó, dos homens que me seguiam até o ponto do 8901, dos tracinhos no teste de gravidez (e bem mais tarde, COVID). Era assim com você? Qual era a cara do seu medo?

Depois que minha filha nasceu, como você bem sabe, nunca mais deixei de ter medo. De coisas pequenas como aranhas, brotoejas e alergias, e grandes, como mobília, aviões, diagnósticos e corações partidos. De tudo o que pode acontecer a ela só por ter nascido (e decidido continuar a existir nesse mundo como) mulher. De tudo o que pode acontecer comigo caso algo aconteça com ela. O clichê do coração batendo fora do peito se mostrando certeiro.

Daí que a coisa mais importante do mindfulness é viver no momento presente. Nesse exato instante, estou presente em minha própria vida. Nesse exato momento, sinto minha respiração. Nesse exato segundo, está tudo bem. Com bastante prática, consigo me convencer de que está, sim, tudo certo, como deve ser, a não ser naqueles dias em que afinal não está, porque tem o medo. Que não é lá muito afeito a essas distinções sutis e precisa da gente para se alimentar e viver.

Minha amiga me contou que pifou uns seis meses depois do diagnóstico da filha. Tipo, tela azul do Windows, como aconteceu no JFK e na grande maioria dos aeroportos do país na sexta-feira passada. Um ataque de pânico paralisante, do qual levou vários meses para se recuperar. Eu não posso me dar ao luxo porque, né, sou só eu. Então tenho que descobrir como estabelecer essa coexistência com o medo.

Ainda sou a Chapeuzinho Amarelo do começo do livro, mas quero, passinho por passinho, transformar esse lo-bo em bo-lo.

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