por Raquel Azevedo
Querida Carol:
Hoje estou pensando em abundância. Aff. Palavra ridícula, new age, para se ter o dinheiro necessário para se fazer tudo o que se quer? Ou seria aceitar o que vem de bom e em quantidade? Ou se permitir merecer? Lei da atração, a plenitude do universo, uma coleção de baboseiras? Será? A diferença entre o que quero, o que devo querer e o que efetivamente preciso?
Fato é que há um monte de coisas na minha casa que tenho que consertar. A maior e mais irritante é a porta de correr que dá para o quintal. Ela já não andava bem há algum tempo. Improvisei. Coloquei WD-40 nos trilhos. Melhorou, mas não resolveu. Troquei o puxador duas vezes nos últimos três meses. Ele insiste em quebrar. O problema está no selo térmico. Ou nos rolamentos e no fato de que ela foi feita há trinta anos. Não há conserto possível, ou pessoa disposta a fazê-lo ou sequer tentar.
O capitalismo daqui me irrita. Estragou? Joga fora (onde?) e compra outra. Chamei cinco empresas para vir olhar. O orçamento mais barato foi Doze. Mil. Dólares. Por uma porta feia e chinfrim. O mais caro, dezoito mil, pelo menos é bonitona e economiza energia. “Essa se paga em cinco anos”, diz o vendedor. Pensa. São quatro portas. Não consigo trocar só uma — não é assim que economia de escala funciona. Aí tem as janelas, algumas (muitas) estão podres e a tendência é piorar. Tudo aqui é fora do padrão, tem que ser feito sob medida e, consequentemente, custa várias vezes mais que os modelos disponíveis para pronta entrega. Ah, sim, tem isso. Se eu comprar hoje, ficam prontas em novembro.
Para além do custo financeiro, tem a Doris. Já te contei da Doris? A minha casa nasceu de um sonho dela, que tinha setenta e oito anos quando conseguiu realizá-lo, em 1998. Ela foi uma mulher interessantíssima, da geração da Iris Apfel. Começou sua carreira como desenhista de moda em 1942, mas logo percebeu que gostava mais de organizar as imagens no espaço do que fazer ilustrações. Muito esperta, conseguiu mudar de ramo e ser contratada como assistente de direção de arte em uma loja de departamento no Brooklyn, a Loeser’s, com vinte e um anos. Era tão boa no que fazia que foi construindo sua reputação até ser a primeira mulher a liderar o marketing visual da Saks Fifth Avenue, depois da Bloomingdale’s e finalmente da lendária Abraham & Strauss (A&S), a predecessora da Macy’s. Sua inspiração eram os criadores do design moderno, mid-century modern. Adorava os escandinavos e era minimalista bem antes da palavra se tornar insuportável.
Quando finalmente construiu a casa, foi fiel ao seu estilo e escolheu linhas retas e materiais simples: madeira, vidro, aço inoxidável. Cores? Branco, preto, cinza e prata. Selecionou armários que se abriam com um simples toque, as malfadadas portas de vidro de alumínio branco feitas sob medida na Califórnia, e encapou todos os seus livros de branco antes de colocá-los nas estantes de madeira de carvalho pintadas também de branco. Nem o carro escapou: dirigia um New Beetle branco, com uma camélia Chanel preta presa no vasinho que vinha no painel.
Infelizmente, Dóris morou aqui por coisa de três anos, só. Um problema de saúde na família fez com que se mudasse para outro estado e afinal acabou tendo de vender a casa. Quando, anos depois, voltou para cá, não tinha coragem nem de passar na porta. Sei de tudo isso porque minha vizinha da casa de trás, arquiteta, manteve contato e até chegou a trabalhar com ela no conselho do Manitoga, aquele museu de design que fica aqui perto, lembra?, e no comitê de preservação histórica do Putnam County.
Não comprei a casa diretamente dela; houve duas outras vendas entre ela e eu. Soube por minha vizinha que Doris morreu em março de 2019, aos noventa e sete anos. Nunca cheguei a conversar com ela. Só a vi de longe, quando ela visitava minha vizinha e parava o Beetle colado no meu jardim. Ainda assim, de alguma maneira que não consigo exatamente explicar, me sinto a guardiã da herança de Doris. Protetora da visão dela, do que deixou no mundo de modo concreto e (quero crer) permanente. Do plátano que ela escolheu preservar, ou melhor, honrar, colocando no centro do projeto. De tudo que é branco, preto e feito de aço inoxidável. Das linhas retas e da simplicidade. Do olhar que se deslumbra com o luxo que mora no óbvio.
Eu sempre quis uma casa de porta vermelha, mas foi bem difícil escolher o tom certo para a porta da casa da Dóris. Eu me senti traindo a confiança dela. Aos poucos fui expandindo minhas ousadias. Hoje tenho uma parede colorida, um banheiro com flores do teto ao chão, uma estante amarela, papel de parede em vários cômodos, uma credenza azul marinho, um sofá de couro vermelho, duas (não, três!) “componibili” coloridas, vários tapetes orientais e até um computador laranja. Coloquei um pouco de borogodó no minimalismo da Dóris, e outro dia recebi o melhor elogio de uma querida que veio nos visitar pela primeira vez. “Sua casa é uma casa de artista”, ela disse. Fiquei feliz demais. Tomara que seja, sim. A casa de uma artista que vai, na melhor tradição mineira, comendo pelas beiradas e aprendendo a ocupar um espaço que nem sempre se sentiu no direito de ocupar. Porque o que descobri com essa odisseia de reformas, obras, legado e tradição é o quanto me custa habitar minha própria casa.