Pular para o conteúdo

Trens cortando o país: A alegria da chegada

por Raquel Azevedo

Tem dias que me sinto com duzentos anos. Não pela sabedoria, mas pelos joelhos.
E tirando a meia olho para meus pés, e imagino as unhas crescendo até darem voltas em si mesmas — afinal minha geração cresceu com medo do Zé do Caixão.
E enxergo os pés do meu pai, tão parecidos com os meus, que ele dizia “pezinhos de Jesus Cristo”, pois tão finos.
E os dele ficaram finos também, quando chegou a hora.
E penso no depois e em quem vai cuidar da cachorrinha, dos gatos, da lagartixa e do peixe e, principalmente, da menina.
E quem vai separar as roupas em brancas e coloridas e cancelar a limpeza das calhas e mudar o plano da TV a cabo agora que venceu o prazo da promoção.
E conferir o calendário de vacinas dos vários seres e desmarcar o médico do dia 30, marcado com quase oito meses de antecedência.
E devolver o sapato que veio errado e lavar todas as roupas de inverno e guardar as do verão no guarda-roupa do HVAC room.
E dar conta de todas as palavras que não saíram da boca ou das mãos e sequer da cabeça, ainda que haja algumas delas nos cadernos no fundo do armário.
E quem saberá a ordem, a importância, os destinatários do que foi registrado (a Fal, ela sempre sabe).
Quem dirá o que está há tempo demais no freezer e quais são as toalhas das visitas.
E quem saberá que na manhã do sábado dia 19 eu chorei escutando Legião Urbana e que meu verso preferido estava em “Quando o Sol Bater na Janela do Seu Quarto” e não em “Pais e Filhos”.
E quem usará os ingressos do Quebra-Nozes comprados na pré-venda da Mastercard, e comparecerá ao almoço marcado para o mesmo dia, no qual não será comemorado mais um aniversário.
E quem decidirá quais são os livros que ficam e quais das quarenta e cinco mil, setecentas e doze fotografias e arquivos de Word e Google Docs merecem ser salvos.
E quais devem ser apagados para sempre, sem possibilidade de recuperação.
E quais aquarelas estão prontas para pendurar e se as caixas de lápis de cor podem ser da menininha de vestido xadrez, que sempre acertou os nomes das cores.
E a data de entrega das mudas das plantas para o hillside e o momento de finalmente cortar as hortênsias secas e o que fazer com as cinco toneladas de folhas do plátano, mas só depois da terceira semana de novembro.
E que quando o Sebastian voltar de Buenos Aires trará os posters da Prensa La Libertad para as molduras que estão na terceira prateleira da estante da esquerda na garagem.
E pensando em tudo isso não me escapa a ironia que um dos meus filmes preferidos se chama “My Life Without Me”.
E finalmente penso na coragem e dignidade da escolha de Antônio Cícero, e na alegria da chegada do depois que não está à mercê do acaso, mas sim nas mãos de quem acredita que a vida é agora.

10 comentários em “Trens cortando o país: A alegria da chegada”

  1. Vera Lucia Bicalho de Azevedo

    Minha querida, Kohl!!!
    Como vc escreve divinamente bem!
    Tudo merece publicação!
    Um livro de encher os olhos e a alma!!!
    Te admiro e te amo demais, minha filha TÃO QUERIDA !!!
    Quanto orgulho sempre tivemos
    de VOCÊ!!!!

  2. Ana Cristina Coura dos Santos

    Que lindo seu texto.
    O outono faz isso, né?! Momento de transição que nos remete à inegável certeza dos fins, ainda que estejamos sempre tão ocupadas com os “afins”.

    Parabéns pela escrita.
    Recebi da Luana, que minha amiga também.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *