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Quando

Eu me agachei ao lado do corpo ou do que um dia foi um. Não encostei nele, não sei falar da sensação ao toque, mas olhando ele se parecia meio que com papelão que molhou e secou, molhou e secou. Quase branco. Massa de torta, acho. Era com isso que ele se parecia.

Sou uma pessoa só. Solitária e só são a mesma coisa? Não sei. As pessoas não querem andar comigo.

Às vezes há um brilhinho de esperança no que promete ser amizade e que, puff, some em seguida. A minha imensa angústia afeta aqueles à minha volta e eu me torno alguém cuja companhia é muito pouco agradável.

Os amigos se despedem de mim dizendo coisas como se eu demorar um bocadinho para responder seus recados é porque estou no meio do inferno astral \ de um trabalho importante \ de um momento difícil. Eu não insisto, saiba. Não fico mandando um milhão de mensagens e aí, podemos falar? Não faço nada disso. Fico quieta e espero.

Por isso, principalmente, me tornei refratária a novas investidas de amizade. Mas de quando em vez ainda caio nalguma esparrela.

Pensei nisso tudo olhando pro cadáver porque, Deus, quem é que morre num apartamento tão chique e lindo – dava pra ver, pelos móveis e obras de arte nas paredes, bibelôs de cristal e cortinas, ainda que duras por décadas de pó acumulado, que o lugar foi bem bacana um dia.

Esse cara morreu aqui e ninguém procurou por ele? Ele não tinha amigos?

Só não corro o risco de morrer sozinha e ser esquecida por anos sobre um tapete num apartamento trancado porque o meu é alugado. Morrer sozinha, ocá, mas em nó máximo um mês minha senhoria estará berrando meu nome e arrombando a porta, furiosa.

Ao me levantar e caminhar na direção da porta, me dei conta. Quem disse que esse cara morreu sozinho? Quem trancou a porta? Não tinha chave na fechadura. Ele entrou, trancou a porta, tirou a chave da fechadura, botou a chave (ou o chaveiro?) nalgum lugar e daí morreu?

Cadê essa chave?

. [no celular: Sundown, de Gordon Lightfoot. Trecho de Todo o tempo em que permaneci de joelhos esperando por você, de Olimpia Caballer -no prelo]

1 comentário em “Quando”

  1. Além de gostar de ler o que você escreve eu gosto de quase todas as músicas que ouve, acho que devemos ter a idade próxima, as músicas são muito confortáveis pros meus ouvidos (risos). Valeu.

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