Saturno queria duas semanas, talvez três, ocá, quatro, numa cidade fria, pequena, num apezinho com padaria e boteco bem perto, não mais do que isso, bom, quem sabe, veja bem, um mercadinho prele buscar macarrão e pó de café.
Saturno queria um teclado que fizesse tec tec tec que nem o teclado daquela tradutora chique, fazer desenhos coloridos e lindos só pela alegria de desenhar, fumar em silêncio na janela, um dia depois do outro, algum vagar, horas regulares de sono, água gelada, geleia de maçã, gibis do Asterix, um cd ou dois do Vanzolini, dias bem, bem, vazios.
Saturno queria duas ou três, ocá, talvez quatro semanas de nada. Tempo. Séries bem ruins. Companhia, sim, se a religião da companhia fosse a gentileza.
Você será o fim da vida, tal e qual eu a conheço. A minha vida. O que virá depois? Eu não sei, você não sabe. Não há garantias, você diz. Então, não quero. Quero o certo, o cotidiano, o imutável, o previsto, o listado, o milimetricamente programado. Quero o que tenho certeza de que está no armário da cozinha, na terceira gaveta do guarda-roupa, no envelope dentro da pasta. Quero o estável, o sólido, a rocha. Quero um dia depois do outro, consultas marcadas com duas semanas de antecedência, nenhum abalo, nenhuma grande alegria, nenhuma grande dor. Quero o impossível.
Na travessia perdemos mais do que nossa capacidade de recuperação pode suportar, mas 2022 foi o momento de alcançar a margem oposta. Atravessamos. Não retomaremos o caminho de antes da tormenta, pois ele não mais existe. Abriremos outros, usando como alicerce parte do escombro que ruiu em derredor, na intenção de preservar a lembrança de que nada é seguro, nada está ganho e construir é o verbo que nos rege. De nossa parte garantimos resistência, produzimos cultura como quem fia: devagar, avançando passo a passo e entrelaçando saberes. Nossa arte é o fazer e dela vem o que nos sustenta em pé. 2022 foi um ano de perdas sentidas, alegrias vagas e toda sorte de adjetivos: um ano de alívio e peso; olhos livres dos anteparos; coração sangrando, mas liberto; cores vibrantes; autores sólidos; alunos engraçados; vinhos encorpados e alguma gentileza. Um ano de tucanos e gatinho nenê; omeletes fofas; caixas de papelão cheias de livros. Se houve alguma babaquice em nossa direção (e houve) Suzi Márcia Castelani e eu perdoamos, fica tranquilo – ainda que não tenhamos esquecido. Um ano de livros belíssimos na Drops Editora, pequenas joias, escolhidas uma a uma: Relicário dos afetos, de Therezinha Melo Urbano de Carvalho (chamada de Rainha na intimidade), Dando nó em pingo d’água de Rafael Ginane Bezerra e Gabriela Szabo e o Ecos do que ouvi e amei, do amado Iata Anderson D’Gerais. Partimos, Suzi Márcia Castelani e eu, para 2023 com várias novas publicações na algibeira, um curso especial que começa agora no finzinho de dezembro e se esparrama por 2023 (com passeios de mãos dadas em galerias e museus e lindas parcerias), fotos incríveis, uma agenda (para alegria dos alunos, comprei uma agenda!), vestidos lindos para todas as ocasiões e brincos-que-balançam, porque não somos obrigadas. Nós de bracinhos dados com os amores da Guilda do Drops, que tornam possível Maximus, Berenice, Lavínia, Irineu, Alcântara Machado e todo o resto. (Não posso e nem vou tentar citar todos os nomes que devo aqui, porque seria uma temeridade, mas para além de Marli, Tiago, Xu (a favorita, vamos aceitar a realidade) e Hugo, nosso amor dá uma rebolada na direção de Natália Carvalho, Luciana Nepomuceno, Paulo Candido, Ana Paula Medeiros, Renata Lins, Daniela Tonnetti, Pedrão Vitiello, Tina Lopes, Pedro Elói, Ivan Pontes, Raquel Urbano, Raquel Azevedo, Claudio Luiz Ribeiro, Fabi Mesquita, Krysse Barros, Pedro Lyon, Miltão e Iata D’Gerais.)
Tou lendo a respeito dum peixe que nasce fêmea e vira macho. Que sorte imensa tem esse bicho, desde que vire um macho hetero. Nunca vai se apaixonar por outro um macho e pode fazer de gato e sapato as fêmeas de todo o mundo – antes de, machucadas e tristes, elas virarem peixes machos também.
Meu amigo de colégio, Serge, saudava esse tipo de coisa com a maravilhosa frase a natureza é tão natural.
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Um processo silencioso, porque doloroso demais para que eu o descreva em detalhes. Fotos, arquivos, áudios, textos. Tudo deletado. Findo. Não existe mais qualquer prova de que você tenha existido. Joguei fora o único objeto que você me deu, um livro, e comprei outro, idêntico. Agora ele não é mais o livro que você me deu. É o livro que comprei. O outro livro, um documento escaneado, salvei e ressalvei, até que consegui tirar seu nome das propriedades do arquivo. Fiquei me perguntando por que você me mandou esse segundo livro. Daí, eu me dei conta. Agora sei. Se fosse um consolo eu lhe daria esse presente, eu lhe contaria seu próprio motivo.
De qualquer maneira, agora você é fantasma sem nome, sem biografia. Sua existência é um abismo. Você realmente nunca devia ter existido.
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Com o desejo de salvar o livro com a Luciana, amanhã vou cozinhar. Talvez não haja o que ser salvo, talvez eu mesma não tenha qualquer possibilidade de redenção, mas antes de dizer para a Luciana que nada salva aquele abacaxi (hahaha), vou tentar. Decidi que vou tentar sozinha todas as coisas que achei que pudesse fazer a quatro mãos.
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Fiz uma lista do que, a partir do dia dois de janeiro, vai ser a minha vida. A perspectiva é meio assustadora, mas espero que isso me leve pronde quero ir. Que nem sei onde é, mas ninguém, especialmente uma mulher sozinha, pode escolher não continuar a busca, a não ser que a grandeza do melhor gesto a alcance. Ainda sou covarde demais (e sei que me escondo atrás de mãe e gatos que precisam ser cuidados). Um dia não serei a covarde que sou. Até lá, vou fincar os pés na areia que não para de se mover e seguir como puder.
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Não há coisa tão patética quanto a pessoa de certa idade e com certa quantidade de calos que tem expectativas. Sim, esperar não criar expectativas já é uma espécie de expectativa, de modo que não sei como sair do buraco em que me enfiei. O primeiro passo, acho, é deixar de ser ridícula. Dá trabalho, porque sou ridícula há 51 anos.
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Reli. Isso aqui tá parecendo com os posts dos blogs do fim dos anos 1990, cheio de autoajuda patética, mas é isso. É neste ponto em que estou e onde, parece, ficarei por algum tempo.
Você e eu não vamos ter aquela conversa, e nós sabemos disso. Vamos seguir vivendo. Vamos nos encontrar em aniversários de crianças e acenar de longe. Vamos trombar carrinhos nos supermercados e comentar preços. Vamos pegar o mesmo elevador e, ainda que sozinhos, inclinar nossas cabeças e sorrir, simplesmente. Vamos frequentar reuniões, entrar juntos em projetos, dividir cigarros e, num porre suave, lamentar o passado. Mas não, não vamos ter aquela conversa.
enviei essa foto para alguém e a pessoa adorou. não disse que é muita informação, não riu, não falou “como pode?” e, acima de tudo, não entrou num vórtice umbiguista das próprias histórias e mazelas e prateleiras. ele viu a foto e elogiou minha zona adorada e, por alguns minutos fui chamada pelo meu nome e fui protagonista duma micro-historinha
A pessoa que vai dar aula às sete da manhã e está fazendo pipoca às duas e meia perdeu o controle da própria vida? Sim? Não? Claro que sim?
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Descobri um novo tema, para uma nova série. Acho que descobri. Fiz um começo de desenho e preciso comprar mais canetinhas de rico.
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Lembra quando eu tava louca atrás de aluno novo? Cuidado com o que você pede.
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Dos três livros principais em andamento um deles totalmente fora de controle. Totalmente. Totalmente. O outro, se eu não cuidar, vai ficar frouxo e bobo. O outro, tudo bem.
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Esse 2022 vai acabar tão tão tão diferente do que pensei. Tão diferente. Tão. Não imaginei que acabasse o ano tão corajosa. Tão cheia de fúria e força no empuxo e dor e esperança e sangue e capacidade. Jamais, jamais imaginei que um ano pudesse acabar assim. Tenho 51 anos e esse ano tão horrível, tão árido, tão cruel, termina horrível, árido, cruel, doce, engraçado, macio, cheio de hematomas e coraçõezinhos pulsando nos olhos, como num desenho do Pipa-Pau. Que ano terrível. Que ano maravilhoso.