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Trens cruzando o país: O chapéu e a corda

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por Raquel de Azevedo

Joana comprou um chapéu. Comprou escondido do pai. Gastou todas as moedinhas que encontrou debaixo da almofada do sofá da sala. O sofá grande, de couro vermelho. Os adultos, na verdade só os homens, se sentavam no sofá e porque o bolso das calças masculinas eram cortados assim na diagonal, as moedinhas escorregavam e iam parar debaixo da almofada. Joana (Jojô) descobriu isso por acaso, há muito tempo, nas férias ainda, quando o tio Juvenal se levantou do sofá e ela ouvir um “plim!’” Esperou os adultos irem embora e foi investigar. Enfiou a mãozinha no vão do estofamento e descobriu uma fileira de moedinhas douradas e prateadas esperando por ela. Jojô quase correu para buscar sua irmã Marina, mas aí se lembrou da coisa que mais queria no mundo e resolveu guardar o segredo – e as moedas – só para si. Toda vez que alguém se levantava do sofá, ela corria para a pescaria. Juntava tudo num pote de iogurte com tampa furada, que tinha ganhado do pai para o feijãozinho que a professora mandou plantar e que acabou não vingando. Jojô colocou o pote no guarda-roupa, num cantinho bem lá no fundo, que só ela conhecia. Toda noite subia no beliche e dormia satisfeita porque sabia que seu segredo estava seguro.

Jojô guardou as moedinhas porque queria muito um chapéu. Jojô se encantou pelo chapéu quando viu Mestre Gonza conduzindo a cerimônia da corda da Marina, que era quatro anos mais velha que Jojô. Mestre Gonza usava um chapéu que parecia uma touca, grudadinho na cabeça, de um amarelo brilhante, com uma fita vermelha na beirada. Naquela época, Jojô era pequena demais para capoeira, pequena demais para entender quem era Mestre Gonza e o que a corda representava, mas gostou do chapéu, da corda da Marina e do som do berimbau. Não contou nada para a Marina e nem para o pai, mas guardou tudo juntinho – chapéu, corda e berimbau – na memória e no coração.

O tempo foi passando, a Marina cresceu, ganhou um vídeo game e largou a capoeira. Jojô pediu para o pai o uniforme e a corda – isso a fazia se sentir mais perto do chapéu. O pai nunca soube que Jojô se interessava por capoeira, ficou feliz. Ele foi lá, falou com Mestre Gonza, e Jojô entrou na turma dos pequeninos, do Mestre Pica-Pau. Jojô vai à capoeira às terças e quintas, depois da escola. Como só tem a calça que herdou da Marina, lava no banho na terça para poder usar de novo na quinta. Lava com sabonete para ficar bem branquinha e coloca para secar lá fora no varal. Da primeira vez que Jojô viu Mestre Gonza na capoeira ela ficou desapontada – ele não usa mais chapéu, raspou todo o cabelo. Mas ela não era de desistir, e para além disso o potinho de iogurte já quase não fechava. Um dia tomou coragem e perguntou, e ele, depois de rir largado mostrando as gengivas cor-de-rosa, contou que tinha comprado aquele chapéu numa loja no início da Rua da Lapa, mas que fazia muito tempo. A loja era fácil de encontrar porque tinha só uma portinha, amarelo-brilhante feito o chapéu. Jojô guardou essa informação no coração, também.

Agora em dezembro é a cerimônia da corda da Jojô . Ela só pensa nisso, treina a coreografia todos os dias, não só às terças e quintas. Mentira. Na verdade, ela só pensa no chapéu. Amarelinho e grudadinho na cabeça, igual ao do Mestre Gonza. Jojô está certa de que sem o chapéu ela não vai conseguir ganhar a corda. A Marina ganhou a corda de primeira, e trocou várias vezes, mas ela era mais velha. Jojô estava certa de que precisava do chapéu. Há umas semanas pediu a Marina para levá-la à loja. Primeiro disse que não podia contar o que queria da loja, enrolou que era uma surpresa para o pai e no final contou tudo à irmã. A Marina também riu, mas não largado como Mestre Gonza. O riso dela era miúdo e de ladinho. Jojô pensava que ela ria assim porque tinha saudade da capoeira e de Mestre Gonza só que era orgulhosa demais para pedir ao pai para voltar. A Marina desconfiou do pote de moedinhas, afinal era muito dinheiro; tinha medo de levar bronca do pai. Pensou, pensou e acabou concordando em ir com Jojô até lá.

Foram as duas de bicicleta, depois da aula de capoeira da quinta-feira, aproveitando que era dia de plantão do pai. A loja era um corredor comprido e apertadinho, com pilhas e pilhas de chapéus de todo tamanho, cor e modelo, dos dois lados, do teto ao chão. A vendedora se divertiu com a história de Jojô e foi fazendo um monte de perguntas para descobrir o que ela queria. Jojô falou em Mestre Gonza, a moça deu um tapa na testa, e levou Jojô até o final do corredor, na parte mais escura e empoeirada da loja. Puxou dum canto uma escada cai-não-cai, subiu bem alto e de lá de cima jogou o chapéu amarelinho de fita vermelha para Jojô.

Atrás da porta da loja tinha um espelhinho, daqueles retangulares com moldura de madeira colorida. Esse era azul. Jojô precisou de um banquinho para ver como ficou. O chapéu era um pouco mais comprido e largo que o que via com os olhos de dentro da cabeça, mas sem dúvida era igual ao do Mestre Gonza. Satisfeita, deixou a maior parte das moedinhas com a vendedora e saiu da loja, uma mão segurando a de Marina e a outra, junto ao peito, apertando o pacote de papel pardo com seu chapéu amarelo de fita vermelha. Agora Jojô estava pronta para ganhar a corda ao som do berimbau, do reco-reco e do atabaque, seguindo os comandos do Mestre Gonza.

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