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Zumbis, pontes que desabam, pêras e um livro gentil


No dia em que a mulher se dá conta do que aconteceu – difícil dizer se ele ainda não sabe o que fez ou se finge que não percebeu, pois é um desses pobres meninos distraídos de quase sessenta anos –, devidamente apropriada da realidade (ela também quase sessenta e burra de doer), deve se alimentar só de pêras. Suculentas. Molhadinhas. Não tão doces. Não tão duras. Pêras boas de morder.

O fato de o cara ser um imbecil e de querer uma mulher totalmente medíocre, que não o quer, não é problema dela, nunca foi, nunca será. O fato de o cara não enxergar a mulher incrível que ela é, não é problema dela.
Tal mulher deve cancelar todos os alunos, a reunião com a sócia e deve tomar um banho e lavar a cabeça com um xampu caro.
Ela deve vestir algo colorido, viscose, poucos botões, alguma coisa larga e fluida que lhe empreste a graça que ela obviamente não tem e que lhe dê a impressão de que é bonita. Bem bonita.
Ela, durante o dia, deve comer suas pêras suculentas e firmes, uma depois da outra, enquanto lê um livro gentil, meio engraçado, meio fatalista, meio cruel. No meio da leitura, ela deve tirar umas sonecas intranquilas, respiração sincopada de quem chorou – ela ainda não chorou, talvez não chore mesmo.
A semana anterior, ela pensará, começou com o tal pobre menino atacando-a com agressividade inacreditável. Hoje, na segunda-feira pós-apuração de urnas, ela entendeu o motivo e dá uma fungadela enquanto estica o braço acima da cabeça para apanhar mais uma pêra.
É estranho, ela pensa consigo, dessa vez não doeu tanto.

Ainda assim, o dia pede delicadeza, calma, silêncio, pêras.
Talvez essa mulher tenha gatos, talvez ela tenha um cão. Apesar de negligenciá-los emocionalmente durante todo o dia, ela deve colocar comidinha limpa e água para eles e cuidar de tudo que os envolve e deve ser verificado. Eles não têm culpa de coisa alguma, especialmente da imensa tristeza dela.
O dia dessa mulher deve terminar cedo, com uma derradeira pêra, meio amarela, meio rosada, costas no armário da cozinha, olhos fixos na pia onde, de cabeça para baixo, há muito secas, canecas coloridas esperam resgate no escorredor de louça. Não haverá salvação para nós, minhas queridas, pensa ela, certamente enlouquecendo.
Depois, sim, outro banho. Breve dessa vez, um sabonete de flores, sem esponja dura, sem lavar os cabelos.
A mulher precisa vestir uma calcinha confortável, uma camisola leve, bonita, rosa ou creme. Deve ligar a tevê num filme, mas nada que fale de amor, felicidade conjugal, tristeza conjugal, com fim triste ou feliz, musiquinhas fofas.

Hoje a mulher precisa de zumbis, pontes desabando, assassinos seriais comedores de orelhas, policiais viciados em cocaína dando surras homéricas em mafiosos.
Amanhã, não, ela não se sentirá melhor. Mas estará viva. Provavelmente.

2 comentários em “Zumbis, pontes que desabam, pêras e um livro gentil”

  1. eu não tenho peras. e nem uma roupa larga e fluida – queria. assim como queria andar deslizando mas, né. fui perdendo coisas e sonhos no caminho. não sei mais ler, por exemplo. não tenho mais, nem mesmo, minha grande dor. fiquei vazia, em dias vazios. mantenho algum vestígio de uma antiga eu, umas alegrias persistentes, mas em claro processo de erosão. conto os dias e junto moedas: sábado, quem sabe, eu possa ver o mar.

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