por Beatriz Outiz
Conheci Clara Nunes quando era criança. Numa época em que não havia internet, só tv e livros e eu, provavelmente empapuçada de uma coisa e outra, fuçava muito nos vinis da minha mãe e do meu pai.
Havia muita coisa ali no armário de discos. Tenho convicção que meu repertório musical foi forjado naqueles LPs (o que me lembra também que meu primo, três anos mais velho que eu e criado como irmão, certa feita emprestou de um vizinho um disco em cuja capa se lia a seguinte anotação à caneta: “emprestar é um prazer/ devolver é seu dever”. Meu primo não devolveu, peguei o disco para mim; uma ladrazinha de doze anos. Silvio, se você estiver lendo, desculpa, tá? A essa altura da vida, não sei onde o disco está).
Enfim, era um barato tirar o vinil da capa, do plástico fino, colocá-lo na vitrola, sentar no chão com a capa na mão e ouvir. O disco era o Clara, de 1981. A primeira faixa do lado A era o hino Portela na avenida:
Portela, eu nunca vi coisa mais bela/ quando ela pisa a passarela/ e vai entrando na avenida
Eu escutava uma voz poderosa e doce e conectava essa voz à foto da mulher com um arranjo exótico de conchas no cabelo. Observava cada detalhe daquela imagem, o disco tocando. De alguma maneira isso entrou na minha alma como símbolo de força e beleza. Garanto que não entendia a maior parte das coisas que ela cantava, e não precisava, na verdade. No carnaval, torço para a Portela e pelo mesmo motivo torço pela Império Serrano. Para mim tudo o que essa mulher cantava era um hino, uma ordem, um caminho.
Outro disco que morava no armário era esse:
O título do disco é a bio da Clara: Se vocês querem saber quem eu sou, eu sou a tal mineira / Filha de Angola, de Ketu e Nagô / Não sou de brincadeira, e a música vai num crescendo maravilhoso; ela homenageando as entidades do candomblé, e termina dizendo que é filha de Ogum com Iansã. Imagina uma menina de uns dez anos ouvindo isso tudo: achava uau, não entendia patavina, mas queria ser a mulher da capa.
E tinha esse também:
Ninguém ouviu / um soluçar de dor / no canto do Brasil /um lamento triste sempre ecoou / desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou
Pronto, já estou chorando. Particularmente, acho que os alunos de todas as escolas do país tinham que aprender a cantar essa música, porque é esse o hino nacional.
Encerrei com o Canto das Três Raças uma apresentação que fiz sobre Os sertões, de Euclides da Cunha, quando ainda na graduação. Achei que cabia.
Toda a força e beleza dela fazem com que cada música seja, para mim, um hino, uma ordem, um caminho.Por Clara ainda vou cantar Portela na avenida num karaokê (pessoa quer cometer um crime e coloca a culpa na rainha). Ah, e por ela vou ver a Portela desfilar na Sapucaí.
Outis, como Odisseu. Gosta de comida e revisa. Está aqui: https://www.instagram.com/beatriz.acencio/