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Trens cortando o país: O pão, o futebol e as palavras

por Raquel Azevedo

Querida Carol:

Domingo acordei às 8:20 da manhã, depois de ter ido dormir um pouco depois da meia-noite. Uma vitória, claro, dormir oito horas seguidas sem interrupção a essa altura da vida. Não sei se acordei sozinha ou se fui acordada pelos gatos que, desde que decidi deixar a porta do quarto fechada, miam do lado de fora, em horários variados. Não fazem o menor segredo da insatisfação geral com a nova política da casa.

A última semana, ou melhor, as últimas duas semanas ou talvez três, têm estado atipicamente frias para agosto/início de setembro. Meu app do sistema de ar condicionado e aquecimento me diz que o ar condicionado foi acionado pela última vez no 28 de agosto. Mesmo assim, foi um único dia em meio a semanas que quase demandaram aquecimento. Veja, não estou reclamando. Detesto o calor, ainda mais diante da perspectiva de verões (e outonos e invernos e primaveras) cada vez mais quentes, mas é um tanto perturbador usar malhas na última semana do que tecnicamente é o verão no hemisfério norte. Ou, como aconteceu no domingo, ter vontade de ir à uma padaria que costumo frequentar no meio do outono ou final do inverno. Decido ir assim mesmo.
Dou comida para os gatos, solto a Tanguita no quintal e me mando para a tal padaria, deixando um recadinho para a adolescente que com sorte vai dormir mais algumas horas. Escolho o podcast para escutar no caminho. Vou de Foro de Teresina, sentindo que estou fazendo algo escondido – de quem? Parei de escutar depois do quiprocó da saída do meu crush e da reação da Piauí e quando voltaram com uma nova composição resolvi não prestigiar. Agora me sinto como se estivesse o traindo ou traindo meus princípios.

No “momento cabeção”, o NPTO recomenda um livro escrito a partir de um podcast na pandemia. “Agora, Agora e Mais Agora” foi feito por um historiador português, Rui Tavares. O nome me soa familiar, mas há quantos portugueses chamados Rui Tavares? Resolvo conferir o podcast na volta para casa.
Peço um capuccino com canela, um croissant e um muffin de chocolate e me sento no balcão. Apesar do frio, algumas famílias com crianças pequenas ocupam as mesas da área externa. Aparentemente não se conhecem, mas logo reparo que as crianças, meninas e meninos, usam o mesmo uniforme, aparentemente de uma escolinha de futebol. Um menininho de cabelos castanhos lisos entra correndo e abraça as pernas da mãe que faz seu pedido ao atendente: “Mamãe, mamãe, ela é do meu time do futebol! Hoje juntos fizemos um gol!” Ela sorri para o filho, mas não para a menina de rabo de cavalo que dá estrelas enquanto espera a vez de chegar no balcão. Nunca vou entender as relações por aqui, mas me alegro pelos times mistos, esperando que o espírito de parceria perdure quando crescerem. Não sei se aí no Brasil é assim – sua pequena joga futebol? Guardo o telefone para comer sem distrações – foi bom ter feito essa regra para nossa família. Antes de ir embora, pego dois pacotes do banana bread que me motivou a descobrir o lugar.

Entro no carro e me lembro do podcast. Coloco o primeiro episódio para tocar. É simplesmente sensacional. O amigo Rui começa explicando o nome, aparentemente contraditório para um podcast que trata de eventos históricos, ou, como ele descreve, “seis memórias do último milênio”, indo do século X até 1948. A parte histórica é fascinante, e escutei seis episódios em uma tacada só, mas o que me fisgou foi a história do “agora, agora e mais agora”. É uma expressão familiar, daquelas usadas por gerações e gerações, cujo significado às vezes se perde no tempo. Conta ele que sua bisavó materna, Carolina Tavares, depois de perder a fala por um AVC, recuperou a fala aos poucos, primeiro usando somente uma palavra, que servia para tudo, depois duas, e afinal uma frase inteira, “agora, agora e mais agora”. Como era a única da qual dispunha, passou a usá-la, com a entonação apropriada, para expressar todas as suas emoções: alívio, alegria, enfado, medo, preocupação.

Tive que parar o episódio nesta altura. Lembrei-me que algo muito parecido havia acontecido com minha avó. Materna, por acaso. Eu devia ter meus doze ou treze anos. Meus avós estavam ficando conosco enquanto reformavam o apartamento. Uma tarde algo aconteceu com minha avó, que tinha a saúde debilitada pela doença de Chagas, e ela perdeu a fala. Não me lembro se houve diagnóstico. Ela ficou um bom tempo sem falar e, quando voltou, foi também aos poucos, como a do Rui. Ela relutava, testava as palavras, e muitas vezes o que dizia não fazia o menor sentido para o queria expressar. Consigo até ouvir a voz dela me pedindo que apagasse os óculos quando queria que ligasse a televisão. Ela percebia a confusão e não conseguia fazer diferente, claro. Mais do que frustrada, eu a percebia angustiada, lendo nos seus olhos arregalados o pavor de que talvez nunca mais conseguisse encontrar as palavras certas.

Fazíamos de tudo para que ela se sentisse melhor. Eu e minha irmã, novas ainda, tentávamos, os corações disparados, adivinhar o que ela queria com seus pedidos inusitados, mas nem sempre acertávamos. A tristeza e a frustração se multiplicavam. O motorista, que já estava com eles há muitos anos, conseguia pegar a lista de compras que ela preparava e trazer tudo certinho, um alívio enorme. Minha mãe, que estava sempre com ela, logo se tornou a tradutora oficial. Não sei em que época do ano isso aconteceu, mas ali, no carro, pensando em tudo isso, senti muito frio.

A afasia passou. Ela conseguiu voltar a se expressar corretamente por escrito e, para além do que é normal com a idade, não voltou a confundir as palavras. Depois de tanto tempo (lá se vão quase quarenta anos), precisei da vó Carolina do Rui para perceber que em mim ficou a semente do medo de um dia perdê-las, também.

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