por Raquel Azevedo
Querida Carol, hoje matei uma aranha. Gigante. Não peluda, por sorte, mas de pernas bem compridas e tortas. Spindly, se diz em inglês. O corpo ovalado, cor de sangue pisado, raias brancas verticais, marcando a cintura. Não foi a primeira aranha que matei, será dificilmente a última, mas é sempre um lembrete de que na minha vida eu sou a pessoa que mata a aranha. Ou que leva lá para fora equilibrada num papel firme a lesma-banana que entrou em casa sabe lá Deus como. Ou que arruma uma caixinha de sapato e um paninho para aquecer o filhote de morcego que caiu da árvore. Ou que, depois de se recuperar de uma descarga de adrenalina capaz de levantar defunto, coloca o ratinho que teve que tirar da boca do gato no vaso de flor, para que ele se recupere e consiga voltar para a natureza. Com certeza foi mais rápido do que eu, que precisei de umas duas semanas para me esquecer da sensação daquelas patinhas na minha mão.
Às vezes essa autossuficiência me sabe a um superpoder, às vezes a uma enorme incapacidade de admitir o desamparo. No cerne dos dois, o medo. De não poder faltar. De não ter espaço para o erro. De ter que ser a que resolve. De não me permitir não saber. Das mais pequenas coisas aos desafios mais insuperáveis.
Uma colega da Vivian perdeu a mãe no início de maio. Aliás, dois colegas, são gêmeos. Na verdade, três, eles têm um irmão mais velho. Uma mulher incrível: generosa, elegante, de um bom gosto singular e uma risada contagiante – quando fecho os olhos, ainda consigo escutá-la. Linda, também. Parece muito tempo, mas sua ausência permeia o correr dos dias para mim, para nossa comunidade, nossa Main Street de Gilmore Girls, e, principalmente, para seus filhos e marido. Fácil pensar em todos os grandes momentos que não viverá com eles – formaturas, primeiras vezes, conquistas acadêmicas e profissionais, casamentos, nascimentos, perdas e decepções. Mais difícil é ficar sem os gestos pequenos e cotidianos que representam tudo o que é uma mãe. Ou uma esposa. A roupa certa para a formatura. O banho e tosa do cachorro. A limpeza das calhas na primavera e no outono. Os formulários para o acampamento. O lugar certo dos queijos, frios, frutas e nozes na tábua. O eu te amo no meio da tempestade. O horário do trem. A melhor boca do fogão. A marca de tônica preferida. O band-aid no intervalo do jogo. As applications para o college. O laço em perfeita simetria. A gentileza com o amigo que nunca conheceu a mãe. O significado da ordem da pilha de contas em cima da escrivaninha. O leasing do carro que vence em dezembro. A cor certa de batom para cada ocasião. A viagem surpresa ao Canadá. O abraço em resposta a O que fazemos agora?
A verdade é que nunca saberemos como será nossa vida depois de nós, minha querida Carol. Ainda que continuem existindo aranhas ou lesmas-banana.
Que lindeza! Sua sensibilidade de ver a profundidade das pequenas coisas me emociona. Obrigada!
Obrigada, minha querida, fico tao feliz de voce gostar e vir aqui me contar.
Uma lágrima aqui desceu.
Oh meu bem <3
Uau! Esse texto me tocou profundamente. Sou exatamente a pessoa que faz, que resolve, que faz a roda girar. E, ainda hoje, me esqueço que a roda gira sozinha, não precisa de mim fazendo-a girar.
Bem mais fácil a gente se esquecer, nao e? Vamos combinar de uma lembrar a outra.
Que lindo, tocante e profundo…
É bonito perceber que a dor de “não poder faltar” tem a mesma origem da felicidade de ser “super” – muito importante, única e insubstituível pra alguém. Você traduziu lindamente essas mistura aparentemente contraditória de alegria e angústia que faz parte da nossa essência.
E nao tem? Muito feliz de ter voce por aqui.