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Trens cortando o país: Caramelinho

por Raquel Azevedo

Querida Carol, hoje é quinta-feira, e às terças e quintas-feiras trabalha-se na cidade. Peguei o trem das 9h21, após perder o das 8h25 por desídia e o das 8h55 por pirraça. Está frio de nos fazer esquecer que temos canelas. A testa descascou, o cabelo desmilinguiu, a orelha quase caiu, mas fui assim mesmo.

Saí da Grand Central pela porta giratória da Madison, um vento como vinte mil lâminas pela frente. A 47 está interditada entre a Park e a Madison, em breve mais um arranha-céu cenário de Instagram. Atravessei no automático sem olhar para o lado. Mal pisei na calçada e avistei um salsichinha minúsculo, pelo comprido como o Rodolpho e a Tanguita, só que clarinho como aquele caramelo quadrado da Ofner que vinha embrulhado no celofane, lembra? Tão pequeno e magrinho que vestia assim um colete estilo banqueiro de investimento, matelassado em tons de azul-marinho, combinando com a coleira e a guia, também marinho, as ferragens douradas.

Ia pelo lado oeste da Madison, focinho empinado, cauda feito bandeira balançando ao vento, levado por um moço magro de cavanhaque ruivo e earbuds brancos. Seguia seu caminho, senhor absoluto das calçadas de Manhattan. Sem nenhum aviso, me pareceu, o homem desenganchou a coleira. Tumtumtum – meu coração quase saiu pela boca, esse monte de genteônibusambulantecarrotáxiamarelo. E se for atropelado? E se roubam essa preciosidade?

Alheio à minha aflição, ele continuou, retinho, na sua jornada rumo ao norte e eu apertei o passo para ver aonde ia, lampeiro e livre, xô coleira e guia. O moço o seguia a alguns poucos metros de distância, mexendo no celular. As pessoas vindo na direção contrária se desmanchavam em sorrisos e awwnns!, mas Caramelinho nem te ligo. Nem para trás se dignava a olhar a conferir se o humano o seguia.

Chegou na esquina da 48, eu só pensava vanslimusinesCitibikescarrospretoscomchofer, ele fez a curva para a esquerda, sem nem uma viradinha de cabeça, tuque tuque tuque, seguiu até a portaria dourada de um prédio chique que eu nunca tinha reparado que existia. Levantou a patinha, a porta automática se abriu e ele entrou no lobby, tuque tuque tuque, parou para ganhar uma festinha do porteiro no caminho para o elevador.

Ganhei meu dia. Obrigada, Caramelinho.

12 comentários em “Trens cortando o país: Caramelinho”

  1. Há beleza no cotidiano! Nada é por acaso, sem o atraso para pegar o trem, o cachorrinho não seria visto. Sempre estamos onde precisamos.

  2. Ahh… se o mundo fosse feito de Caramelinhos simpáticos e seguros de si sem q essa segurança passe por um ego inflamado e inflacionado! Amo Caramelinhos!

  3. Lindo e delicioso texto, Raquel! Delícia de cidade.

    Saudades do Rodolfo, que eu conheci. E de vc.

    (Tive que abrir o dicionário pra saber o que era “desídia”, rsrsr…).

    Bjs

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