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Permanência

Eu não me lembrava de você. Nem do seu nome, nem da sua biografia. Tinha me esquecido do seu cabelo, do seu cheiro, da sua voz, das suas mãos, da sua queda pelos tintos, da sua cara. Bom, eu não me lembro mesmo da cara de ninguém. Eu não me lembrava de você. Não me lembrava da faculdade que você cursou, essa parte é bem confusa para mim. Não me lembrava do samba-canção que você canta enquanto se veste. Do seu sotaque. Do seu hábito de encolher os ombros quando está cansado, mas não quer ir para casa. Da sua irritante rota de fuga, como se você tivesse, na memória, um mapa de todos os lugares e soubesse como sumir, de repente, tipo o Batman. Não me lembrava das suas piadas, das coisas que você gosta, dos seus filmes. Ah, os seus filmes. Eu não me lembrava das suas músicas, das suas fãs, da sua sedução grosseira e onipresente. De quando em vez me canso de brincar, você se cansa de fingir, mas também não me lembrava disso. De quando em vez, brigo com você dentro da minha cabeça, só dentro da minha cabeça, e falo um montão de coisas e me esqueço de você também e, de novo, só dentro da minha cabeça, porque cada centímetro de mim na verdade se lembra de você, minha pele se lembra de você, meus capilares se lembram de você. Mas, olha, não me lembrava dos lugares, das escadas, dos inventados “fica”, “não posso”, “telefonei pro cara”, “acho que o projeto sai”, “sua gravata, quem fez o nó, isso tá horroroso”, “a sua mãe, como está?”, “cadê o passaporte”, “a tradução não pagou”, “alugaram o apartamento?”, “fica em silêncio só um minutinho”, “tá saindo uma fumaça estranha da cafeteira”, “vê se o controle remoto caiu aí atrás do sofá, na bandeja ele não tá”, essa domesticidade impossível, inalcançável e inventada a cada instante, como se o mundo nunca fosse acabar, como se houvesse solução, como se. Não me lembrava de você, do mar em sua pele, da avelã – quase verde – dos seus olhos (pelamordedeus, Fal, que coisa cafona, apaga isso e vai pra chuva dar uma volta com o cão), das suas orelhas bonitinhas, dos pelos do seu braço, da sua queda pelo abismo, das teorias das muitas evoluções, do fim apoteótico (o meu), do despertar quando ainda é madrugada, do amor pelo Keaton, pelo Mendes Campos, pelos Verissimo (Pai, Filho, Espírito Santo), da sua capacidade de transformar o banal em maravilha, do livro usado de apoio para escrever o bilhete (“olha aí, marcou a capa”), da sua rara gargalhada, do seu horror à madrugada. Eu me esqueci, uma vez, de você, que se esquece de mim a cada vez que o ar deixa seus pulmões. Esvazio o cinzeiro antes de entrar em casa, lavo a louça que não tem fim, cozinho a mesma coisa de sempre, respondo ao recado da Suzi, abro o dicionário, não me lembro de você, procuro meus mentolados em cada canto dessa casa e encontro o maço todo mastigado e babado no ninho do putinho do Otelo, tiro a casca do ovo cozido, pedacico por pedacico, pelinha por pelinha, me pergunto como foi a cirurgia da Nina, resmungo com a Maliu que não tomou o remédio na hora certa, não me lembro de você, digo tchau pro Pedrão duas vezes na mesma noite, respondo mal ao e-mail mais grosseiro que já li na vida, leio a receita nova do chef Baumel, não me lembro de você, fotografo a capa do livro pro Instagram, roubo um bombom do pote, mando mensagens de voz para a Cam, boto Elvis Presley no último volume, escrevo outro postal pra Nepomuceno (que vai parar de falar comigo em breve), compro lençóis na Internet, brinco de pega-pega com o cãozinho fofo, mando vídeos pra Mariola, não me lembro de você, não me lembro de você, não me lembro de você, não me lembro de você.

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