Luciana querida, nosso livro de comida me assombra dia e noite. Não quero falar sobre isso.
Você me perguntou do atum que comprei que nem uma pata, preparei e congelei. Acabou. Agora não quero ver atum por um ano.
Tenho cozinhado porque, né, que solução além dessa.
Trudia eu disse pra D que fiz risoto para “uns amigos”. Mentira, mas eu quis fingir que tenho amigos lotando minha cozinha, fazendo frases engraçadas e tomando vinho tinto em taças de cristal fininho. Na verdade, fiz risoto para os amigos da Marli. Coloquei a travessa sobre a mesa (note que não servi na panela, veja meu grau de civilização), dei adeusinho e meia-volta. Subi, tomei banho, botei pijama descombinado, meias despareadas e roupão lilás. Paguei de descoladíssima pra D, mas fiquei aqui, vendo série dublada e arrancando casquinhas metafóricas. Ele não liga se eu tenho uma turma de cem pessoas ou se só tenho o Zé do Leo Jaime. Eu sei, você sabe, ele sabe, o papa é pop. Mas e daí, Luciana? E daí? Eu não queria que D me achasse uma esquisita que não tem amigos. Aqui entra a voz do narrador dizendo “é tarde demais, Fal”.
Ah. Fiz siri ontem. Só pra mim. Fiz siri porque queria procrastinar a tarefa do Matisse. Luciana, foram meses nesse texto. Cabei só hoje, depois de comer a última partinha do siri.
A Carina, muitos e muitos anos atrás, foi quem me ensinou que siris são caranguejos o que resume todo o meu conhecimento sobre esses caras.
Piquei cebola e tomate (montanhas de cebola, montanhas, montanhas), refoguei e botei lá todo o meu lindíssimo siri. Um pacote de 600 gr. Daí uma taçona de vinho tinto e um copo de caldo de legumes (eu contei que congelo meu caldo de legumes em copinhos de 300ml? Menina. Sou organizada demais). Foguinho mais baixinho do mundo. Daí piquei um pimentão vermelho e fiz rodelas com outro pimentão vermelho e um amarelo – deixei todos os meus pimentões num cantinho.
Enquanto a carninha cozinhava, eu matei a garrafa de vinho e lavei louça, limpei e esfreguei porque cozinha imaculada é um dos meus muitos lances doidos. Taí outra coisa a respeito da qual não falaremos.
Derrubei 300ml de leite de coco na panela. Sou demais dessas, demais, demais. Quando o leite de coco borbulhou fazendo um barulho esquisito e espirrando nos meus olhos, botei meus pimentões picados e rodelados na panela. Não saí mais dali, porque eu queria que o pimentão cozinhasse, mas não que ficasse molengo.
Ficou lindo, o cheiro faria crise de choro em qualquer pessoa sensata. Tipo eu.
Comi com arroz branco mais simplinho do mundo. Mas assim. Comi enquanto me achava a pessoa mais talentosa da face da Terra.
Enquanto comia e bebia outro chileno (rose dessa vez) vi um filme muito triste chamado Um lugar especial.
Ando lendo e vendo muito sobre morte, pessoas que vão morrer e despedidas. Ando triste e suspirenta e esse estado é péssimo para a vida e ótimo para escrever livro. Por isso, tenho trabalhado. Feito um adultinho.
Não como doce há muito tempo, mas se comesse, a sobremesa seria Romeu e Julieta. Você sabe. Histórias de amor em que todo mundo morre no fim. Feito no livro, feito na vida.
Fora de ordem:
1) Não banquei de ver “Algum lugar especial”. Ele lá, me esperando, mas o estômago tá que não aguenta. Em compensação, consegui uma cópia de “Z”, classicão do Costa-Gavras, que assisti provavelmente aos dezenove, no tempo em que só via filme-cabeça e era um velho chato. Trinta e nove anos depois sou mesmo um velho chato que arruma cópias dos tais clássicos cabeçudos e na hora de revê-los capitula e vai assistir, pela quarta vez, o “Tenet” que a tevê teima em repetir para então constatar de novo que não adianta, na teoria eu entendi, mas na hora que assisto não entendo é nada, nada encaixa na caixola.
2) Esse siri me fez salivar mais do que o cachorro do Pavlov. E o vinho? Não tenho rosé, então vou abrir uma das três garrafas que ainda tenho de um tinto honesto, já já eu brindo com atraso.
3) Esses risotos pros amigos da Marli pioraram a minha salivação, tô quase babando na camisa.
4) Esse D, meu deus, tem horas que é uma besta mesmo, só pode.
5) Ando não lendo e não vendo quase nada sobre a morte. Mas ela sempre está perto, não adianta fugir.
6) Sexta-feira. Dia do boteco embaixo do prédio tocar pagode com microfone e caixa de som nas alturas, fora o coro de bêbados cantando junto. O grupo até toca direito, mas o repertório é o mesmo. Que venha o sábado, é o que resta.
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Entendo o assombro, baby. Por aqui são muitos os fantasmas. Eles fazem uma algazarra danada e não me deixam dormir, quase nunca. Li e cada palavrinha aqui era um afago. Escrevi pra você e ancorei no Cais. Beijo
Fantasmas de todo tipo.
A ancoragem no Cais é a mais linda do mundo.