Cada um tem o seu e não adianta o amigo criticar. Não adianta cê me dizer _Ê, Fal, deixa de ser trouxa_. É meu amor. Me deixa. Eu mendigo sorrisos, assim como mendigo ideias e palavras bonitas e, vá lá, inspiração. Ele é minha musa, sim.
Processo criativo, você desenvolve ao longo da vida e seu processo muda e muda e muda (Deus podia ser bão e mudar também o objeto do amor, em vez de manter a gente doida por anos e anos no mesmo cara que nem tchuns).
Processo criativo tá aí para ser reinventado todo santo dia, a cada mudança de casa, de estado civil, de dieta, de candidato, de gosto. A cada mudança de luz. A cada variação de temperatura. Junto papelitos e frases soltas e imagens e rimas tontas e conversas dolorosas ao longo dos dias e dias. Encaixo tudo num cadernão pra decidir, um dia, se aquilo vai pro Matisse, pruma poesia, pra aula do Pedro, prum postal da Luciana, prum texto sobre o qual D não fará comentários, mas que eu fiquei tão feliz de escrever que tudo bem, mais ou menos.
Meu processo criativo está, para sempre, ancorado no meu método – seja lá qual for meu método nessa fase da vida.
Tralha juntada, recortada, colada, anotada, passada a limpo, reúno tudo e escrevo deitada na cama, de barriga para baixo. Mas só se não tiver calor. Se tiver calor, trabalho deitada de barriga para baixo no tapete da casa da Ana e do Paulo, debaixo do ar condicionado. Se eu estiver frágil e chata (_Mais, Fal?_, trabalho deitada de barriga pra baixo na cama da Telinha, refazendo e refazendo meu bordado, a mão dela nos meus cabelos, um intervalo de choramingos e palha italiana, risadas, lembranças boas demais. Mas se eu tiver muito triste e tiver passado a noite fritando debaixo do edredom vermelho e verde, trabalho sentada na cadeira lá de fora, com os pés na mesa de centro e a gata malvada trepada em mim.
O jeito que trabalho faz – também – parte do meu processo criativo.
Não consigo criar sentada numa escrivaninha, sem ouvir música antes, sem ouvir a tevê durante, sem água gelada (mesmo no inverno), sem – às vezes – espiar uma foto secreta, que _só eu tenho_, ele, lindo, lindo mesmo, rindo para mim e só para mim, orelhinhas bonitinhas, cara de _ai meus deus, que saco a veneração dessa mulher_ (mas eu não ligo), sem parar no meio para mandar uns recados doidos para Suzi (_Zuzi, você acredita que…”_), sem fazer perguntas idiotas para ele, só para obrigá-lo a falar comigo (eu sei, sou baixa demais e mando uns memes tontos e uns _ você acha que eu devia…_).
Não dá.
É impossível para mim, dissociar processo criativo do trabalho propriamente dito, o lugar onde trabalho (e a posição), da água e do barulho de _Supernatural_, do meu caderno colorido e todo rabiscado, da Ana chegando tarde e cansada e fazendo lasanha, do Paulo indo fumar lá fora, da minha mãe achando roupa na loja chinesa e dizendo _Abre esse anuncio que eu mandei pra você_, da Carola me mandando corações no meio do dia só porque a gente se ama, dos áudios que me chamam de preta, da gargalhada a Suzi antes do indefectível _ De quem foi essa ideia idiota, Fal?_, do café com leite da minha mãe, dos dicionários abertos em volta de mim, do Miltão me falando de música e da USP, do chá cor-de-rosa no copo lindo, dos catiorros que a Mari me manda no gerenciador, dos recados bissextos do Paulão, _Fal, se você tiver material para mandar para mim…” – que querem dizer *Fia, você está trabalhando, pelo amor de Deus?*, das fotos dos livros de Carol e Karol, dos textos da Diana, das minhas datas com a Joana, dos áudios sem pé nem cabeça do meu irmão.
Processo criativo, trabalho, método, anotações, ideinhas concatenadas, pesquisa, caneta de tint preta, roupa de ficar em casa, mais trabalho.
Você, seu processo criativo, o Chico Buarque, meu processo criativo, o brilho do cigarro no escuro da varanda, o seu amor, as prateleiras içadas, o meu amor, a razoável distância, a questão que se faz, o tema, minha narradora que certamente morrerá em fevereiro, as referências do Paulo Ronai em todas as partes, as excelentes pesquisas da Krysse, os J. Marías empilhados, a banda alemã, o gato deitado na minha bunda, as ideias, o tema periférico, as palavras, as definições, as saídas mágicas, a tampa sumida da caneta, o cachorro comendo a cola pritt, o livro novo da Valek, as fotos que ele não me mandou, a significativa distância, as frases bem sacadas do Verissimo, a tomada de fôlego, o concerto de Mahler, as questões debatidas mais de um vez, aquela crônica relida de novo do Paulo Mendes Campos, a encomenda dos orgânicos, a lista de tarefas da Suzi, as imagens coladas a sabe-Deus-o-que, as portas abertas, escancaradas, batidas na força do ódio e deslocadas do batente, o tema central, os muitos nãos, a diferença de tom, o _eu estou noutra página_, o livro grifado em cor de abóbora, a Barcelona da Cyntia: processo criativo, trabalho, juntação de tralha, palavras, cuidados que tomamos ou não com quem amamos, ideias postas no papel, processo, processo. Ah, eu falei da música? Ah, eu falei do amor?
*2022 08 29 #DropsDiarinho*
( Descabelada no vídeo, mas é que o dia em que eu aparecer não descabelada, ninguém me reconhece. )
que escritora incrível que você é
eu jamais faço sentido, vc é generosa demais.