Pular para o conteúdo

O moto-contínuo

por Priscila Cattoni

Maria Fernanda – @collages420

Não é possível recomeçar o que nunca existiu. Atenção: não é possível recomeçar o que nunca existiu.

O recomeço, a nova chance ou o Sísifo amaldiçoado com sua pedra, preso em um eterno Dia da Marmota mitológico – Hey, Bill, como vai você? –, mas sem o consolo do charme de uma Andie MacDowell ao seu lado?

Recomeçar é ressuscitar da morte que nos leva um pouco quando mata nossos amores. É também, ao parir, morrer e nascer a um só tempo: morre a mulher solta no mundo, criatura una, primeira pessoa do singular, cheia mais de verdades do que de dúvidas. Nasce aquela mãe que, feliz ou frustrada com a maternidade nem sempre planejada, nem sempre desejada, nunca mais dormirá sem ter certeza de que a cria dormiu, de que a cria chegou, de que a cria acordou, de que a cria.

É a louça suja na pia, a cama por fazer, a roupa para lavar, o chão para varrer, o pó para tirar todo dia, todo dia, todo dia.

É o primeiro de janeiro, sete ondas, doze uvas, come a lentilha, não esquece a arruda. Passa o café, vai no mercado, tira o lixo, leva a criança, pega a criança, abre, fecha, passa, dobra e guarda.

É a emoção do casamento, a felicidade do divórcio assinado, a alegria da casa comprada, o alívio da casa vendida. É o carro novo, cheirinho de couro.  É a dieta – porque hoje é segunda-feira –, o curso de alemão porque o ano começou, o projeto verão porque é primavera.

É a esperança e a celebração na figura do curumim vacinado no terceiro ano, terceira cepa da velha pandemia. Apesar dos genocidas, dos negacionistas, dos terraplanistas. Apesar. O retorno ao abraço da família e dos amigos, apesar da máscara e do álcool em gel, graças à vacina.

É o novo amor, apesar da máscara, com a máscara. Um amor novo é dos melhores recomeços. Faz bem para a alma e para a pele.

É a eleição, o voto certo, certeiro (oremos!) para trazer de volta a democracia, a paz de espírito, a vida, o saudável discordar, a benção da ciência.

O recomeço é saber que existe o fim e que nem sempre é triste, nem sempre é drama. O recomeço é saber encerrar para dar espaço ao novo. Encerrar os ciclos, as relações desgastadas, os projetos prontos. Nem tudo é para sempre. Romper os vínculos tóxicos é o recomeço. Abandonar aquele emprego frustrante é recomeço – e privilégio (lembrar: dê valor ao seu. Privilégio, não o emprego, criatura!). É saber que nem sempre há ponto parágrafo: há a hora do ponto final. Nesse caso, aqui.

Priscila Andrade Cattoni. Nasci em Salvador, em 1972 – poeta, redatora, revisora. Idealizou e editou o blog Dedo de Moça, foi redatora da revista Mad e publicou poemas em antologias poéticas, sites e revistas literárias. Em 2005, criou e coordenou o Festival Segundas Poéticas. Também coordenou, produziu e mediou mesas das edições cariocas da Festa Literária alternativa à Paraty (Flap!).

Instagram – @priscilacattoni

site – www.priscilacattoni.com

19 comentários em “O moto-contínuo”

    1. Mais uma vez me encontro recomeçando… Foram muitos recomeços nestes últimos anos de tantas fatalidades pessoais. E não terminou. Seu texto coopera com o otimismo que me resta 💪🏻🌱 ponto

  1. Priscila, seu texto é revigorante! Ainda que eu fosse um sommelier de palavras, falharia ao tentar descrever todas as nuances impressas aqui. Obrigada por essa leitura encorpada que desperta os sentidos e harmoniza com a esperança. Um brinde ao seu talento. Saúde!

  2. Excelente texto e que nos faz sentir parte dele. Estamos, de fato, o tempo todo recomeçando. É uma monta russa contante, cheia de emoções, idas e vindas.
    Adorei.
    Parabéns

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *