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Não tinha verde, Picasso. Se vira com o azul, até chegar.

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por Suzi Márcia Castelani

Vocês não têm ideia do meu alívio ao ver famoso biógrafo dizer em entrevista que veio ao mundo para explicar o passado. Até hoje, no meu convívio, a única pessoa que possuía todas as respostas e as fornecia, mesmo não solicitadas, era um tio muito chato.

Minha compreensão do passado está contida entre a notícia do jornal de ontem e a mais profunda estupidez. Nesta sopa primordial de dados pretéritos minha mente figura como o macarrão de letrinhas,  boiando entre entulhos, incapaz de sinapses reveladoras mas ainda pronta para oferecer um bom caldo.

O passado continua a bater à nossa porta todos os dias: nos esqueletos que a Carol desenterra, limpa de pincelzinho, fotografa e só a universidade e Deus (nesta ordem) sabem o que ela faz com aquilo, nos textos antigos que chegaram até nós por tortuosos caminhos e no timbre de voz herdado da mãe a confundir e causar embaraços aos namorados no telefone.

A dor maior é que o passado já aconteceu. Toda e qualquer análise só é possível a partir do registro de alguém, de algum lugar e rastros de um povo que viveu num tempo que já não existe.

Se os dados herdados são obras completas, fechadas e acabadas, poucos recursos nos restam para a análise além da comparação. Se, por outro lado, o passado nos legar o registro do processo, o dia-a-dia, o fazer e desfazer e as tentativas que não passaram disso, vamos da análise da obra para a compreensão da atividade humana que foi capaz de empreendê-la.

Comparar obras que sobreviveram a um determinado tempo é trabalho genial. Disso se ocupam mentes primorosas, tecendo hipóteses espetaculares, das quais bebemos sem qualquer moderação. Para falar de um povo, saber de seus fazeres, entender as tentativas que resultaram em sucesso e, principalmente, as que produziram fracassos, precisamos da lista de compras, o item não encontrado, a cor que ainda não era produzida, o fornecedor que faliu, a febre que manteve o artista acamado e que chá ou beberagem foi receitada para a cura. É necessário que a vida brote das páginas do registro diário e comezinho, da nota tosca no papel de pão.

Meu conselho sobre o passado é o mesmo que dou a respeito da convivência com sogras: atenha-se às partes boas. Não sendo possível, mande embalar para presente e contrate a entrega para o endereço do famoso biógrafo. Satisfatória ou não, a explicação virá, afinal, ele veio ao mundo para isso.

Suzi Márcia Castelani, coeditora.

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