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Esqueci que terminar é liberdade

por Krysse de Barros

Vênus de Milo*

Eu me esqueci que o fechar dos ciclos traz novas palavras. Que é preciso voar para lugares cujos cheiros desconheço. Vencer o medo apesar dos olhares de reprovação.

Recomeço de onde parei. Necessito livrar-me do peso que ameaça me afogar. Toco o fundo da piscina sonhando com o mar. Alcanço a borda, pego fôlego e recomeço a nadar. Vou além da arrebentação e boio com meus olhos voltados ao céu. Tal visão faz o tempo parecer infinito.

Eu me refiz para recomeçar. Faltam algumas partes. As que se escondem na obscura imensidão do meu ser. Aos poucos aceito a realidade de não estar inteira. Essa é uma outra eu.

Experimento a minha incompletude não em busca do outro que me é externo, mas à procura das minhas partes que vagam em outros tempos. Momentos que vivi e aos quais não posso voltar. Épocas de inocência na infância, de alegria ou dor ante tantas possibilidades. Rejeitei o leite do peito da minha mãe. Não quis o leite que esguichava da mamadeira. Comi ao meu modo, de colher.

Tento o perdão numa ridícula imitação dos seguidores da fé. Não compreendo palavras que atormentam em vez de libertar. Vomito meia dúzia de contrariedades e deixo a mentira para os que dela necessitam.

Sou tudo o que tenho.

E me esqueci que terminar é liberdade.

Krysse de Barros. Gosto de cachorros e gatinhos, de árvores e de praias ao pôr-do-sol. Sou advogada, mas podia ter sido arquiteta, e mãe de quatro humanos e dois cães, Canela e Lobo.

Instagran: @kmrb66

blog: umatabacariabrasileira.tumblr.com

Twitter: @KrysseB

*

*A Vênus de Milo é uma escultura grega do período helenístico e, no comecinho do século XIX, foi reencontrada numa escavação na ilha de Milos, lá na Grécia. Queremos muito mesmo acreditar que essa Vênus é (os deuses sempre são, nunca fale dos deuses no pretérito) uma representação da deusa do romance e do amor.

É quase um milagre que a peça tenha sobrevivido, pois estátuas da velha Grécia, por mil e quinhentos anos, foram queimadas em fornos para que o mármore virasse cal e pudesse ser usado para construir casas e templos – para a honra de deuses outros. A história da redescoberta Vênus é suculenta. Envolve um agricultor grego e soldados franceses, espertalhões daqui e dali, sorte e grana. Ah, e cara de pau. Gente, roubo também, viu? Os franceses simplesmente tiraram a estátua da ilha.

Adorei que a Krysse a tenha escolhido para essa nossa edição porque poucas coisas na vida nos obrigam a mais e mais dolorosos recomeços do que o amor – e faço parte da turma que deseja acreditar que estamos olhando para a deusa do amor. O amor, a perda do amor, a preparação para um novo amor, a volta do amor nos exigem sempre frescos, núperos. Sempre preparados. Talvez com uma faca na bota, mas ainda assim novinhos em folha.

Hoje, Vênus mora no Museu do Louvre, em Paris. Se bem que disso você e eu já sabíamos: o amor mora em Paris.

Fal Vitiello de Azevedo

Editora

17 comentários em “Esqueci que terminar é liberdade”

  1. Querida e admirável amiga distante.
    Texto sensibilizador e profundo.
    Recomece sempre. E termine com ou sem acabamento, conforme a sua necessidade.

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