por Raquel Azevedo
O esconderijo da chave sobressalente da casa.
O petisco favorito de cada gatinho e da Tanguita.
O horário exato do trem que preciso pegar para estar na minha mesa pontualmente às 9:30.
Os dedos curtos e as unhas quadradas, machadas de nicotina, do meu avô. A voz dele quando dizia para nós “Sabe que você é linda e eu te amo?”
As manchas da vaca mocha que minha avó me deu quando fiz onze anos.
A carteira vermelha onde guardo os cartões de crédito.
O cartão do seguro-saúde, sem o qual não sou atendida em nenhum hospital (salve o SUS!).
A letra da canção italiana que minha mãe cantava para mim quando eu era pequena (C’era una volta una formica, che trasportava un gran chicco di gran.)
O hálito da minha filha depois de amamentar.
O código do portão eletrônico da casa da minha irmã.
A primeira vez que pisei na Champs Elisees.
O Kilimanjaro do Iceberg nas férias de janeiro.
A gargalhada da minha tia muito amada, e a blusa de lurex que ela usava no legítimo dancing days.
A lista do supermercado. De papel, porque sou das antigas.
O sofrimento da minha primeira desilusão amorosa e o carinho e cuidado da minha prima que largou tudo o que estava fazendo para ficar do meu lado.
Ainda com essa mesma prima, as madrugadas viradas assistindo desfile de carnaval.
Os réveillons na praia (alguns, talvez seja melhor esquecer, sim).
A coxinha de catupiry do Doce D’ocê. As notas cor-de-rosa de cem cruzeiros que eu guardava para comprá-la.
Minha filha dando uma maçã para um cavalo. Mergulhando com o rabo de sereia. Andando de avião pela primeira vez. Dando pulos de alegria e tentando alcançar os fogos de artifício do Quatro de Julho.
A rede de Betim. O balanço de Betim. A casinha de brinquedo de Betim. Meu lugar de ser feliz.
O primeiro (único?) luau em Búzios.
Minha Melissa traçadinha que o mar de Copacabana levou.
O dia que minha melhor amiga enfiou um pirulito Campeão no meu copo de Coca-Cola e eu, numa reação atípica para mim, mas compreensível para uma adolescente, virei o conteúdo do copo na cabeça dela.
O Topo do Mundo e o Rancho do Peixe.
A terra vermelha de Minas.
O vagão do metrô que fica exatamente a cinco pés da saída que preciso.
Meu pai dizendo “Quer dizer que se eu chegasse cinco minutos antes eu não almoçava?”
A letra da minha professora da terceira série. Por algum motivo sempre me lembro das letras das pessoas.
O atalho da Grand Central até o Rockefeller Center.
O ar de Nova York nos dias depois do 11 de setembro. Os cartazes com fotos dos desaparecidos coladas nos pontos de ônibus e cabines telefônicas.
A primeira vez que fiz alguém chorar.
Como pedir desculpas.
Há sempre uma oportunidade de me perdoar e começar de novo.