por Suzi Márcia Castelani
O sol escaldante é aliviado pela sombra intermitente de poucas e mirradas árvores. A fila anda devagar e aos solavancos. As pessoas buscam distrações prevendo que ficarão ali por horas.
Entre as poucas manchas de sombra, sol a pino e a certeza de que ainda faltam pelo menos três horas de espera. Uma espera rastejante, quente, cansativa e conformada.
O romance premiado que trouxe na bolsa, com a intenção de tapear a espera e me ajudar na passagem morosa de tempo que me sua o buço embaixo da máscara, é cheio de digressões filosóficas e me impacienta. A narradora mistura sua voz à da personagem e a cada fato apresentado existe o que ela acha e o que pensa a personagem e eu, definitivamente, estou pouco me lixando para a opinião da descritora.
Olho para os lados e não vejo nada que prenda meu interesse para além de alguns segundos. Fotografo a placa de um salão de beleza que anuncia beleza e entretenimento e mando pra Tina.
HAHAHAHAHHAHAHA
Eu sabia que não carecia legenda.
O carrinho de café e salgados não aceita cartão e não recebe por pix. Quem ainda carrega dinheiro, peloamordedeus? A enfermeira mal-humorada passa recolhendo o papel assinado e o RG. Bate aquele medo de entregar – quem me garante? –, mas entrego.
Todos assinamos que a culpa é toda nossa pelo que quer que seja que venha a nos suceder a partir daquela fila. Achei justo e acho mais: deveria haver um aplicativo em cada celular que fizesse a pergunta: você tem certeza? antes de qualquer decisão nossa e a continuidade da ação só seria factível mediante o encaminhamento do aceite firmado no aplicativo. No final do ano seria emitido um relatório e a análise do resultado definiria o grau da nossa autonomia na tomada de decisões no ano seguinte. A análise levaria em conta, principalmente, o reflexo das decisões individuais no coletivo.
Se resultasse num grau de acerto superior a cinquenta por cento nas decisões tomadas, continuaríamos a ser independentes e autônomos para gerir nossas vidas. Percentuais de acerto abaixo dessa média exigiriam graus de acompanhamento variantes entre assessoria e tutela completa. Analiso rapidamente quem teria credenciais para exercer minha tutela e me conformo: a ideia do aplicativo é péssima. Efeito do sol na cabeça, certeza.
A fila anda mais um bocado, finalmente alcanço uma sombra. O diabo continua sendo não ter onde sentar. O figurino mal escolhido já marcou duas tiras nos meus ombros e deixou vermelhas as minhas costas. Quem se lembrou do protetor solar? Eu não.
Olho com inveja as pessoas amontoadas na sombra da árvore seguinte onde há um pequeno banco. Tento adivinhar quanto tempo leva para eu chegar lá e miro as pessoas no entorno para saber com quem terei que disputar o assento. Vou perder fácil, meu Deus do céu, quanta gente velha!
Fome. Penso no pacote de amendoim salgado que tenho na bolsa, mas lembro também que não tenho água. A soma dos equívocos do dia não me recomenda para coisa alguma. Opa, alcanço a sombra seguinte e me sento na grama mesmo. Algumas formigas não podem piorar tanto o quadro.
O direito, senhora. A vacina é aplicada no braço direito.
Está todo picado de formiga, tem problema?
O compromisso de viver é cansativo demais.
Suzi Márcia Castelani, coeditora
Ah, Suzi. Eu não achei a ideia do aplicativo ruim, não! Quem sabe ele me impediria de fazer bobagens, rsss……
hahahahha!
Quem ainda carrega dinheiro, peloamordedeus? Eu. Uga Uga. Buga Buga
hahahhahahah!
Eu também, Thai!!! <3