Aquarius, a série, acabou. Entendi entendi o motivo de não haver uma terceira temporada. Trata-se ali muito além dos crimes do Mason e seus parceiros de crueldade, muito além da vida nos remotos anos 1960, muito além da estranha vida que construímos para nós mesmos no começo dos 1970 (não é coincidência que eu seja dessa época, também sou muito estranha). Fala-se ali da vida que vivemos hoje. Aquarius, percebam os senhores, as senhoras, é sobre você, sobre mim, meu cão, minha calçada irregular, o bule de porcelana branca com mais de cem anos que quebrei essa semana, a indignação quase santa da Luciana Nepomuceno (cujo sobrenome não consigo pronunciar), suas orelhinhas de duende que vejo na foto dos outros, a trepada no meio da tarde, a luz do sol atravessando a cortina, nossos corpos e certezas, as coisas que não sabemos, mas a Flávia Penido explica, a chave do carro caída debaixo do criado-mudo, a necessidade predatória e kamikaze, que não nos fará bem algum, de dizer toda a verdade, meu choro em plena repartição pública, o medo – que é, na verdade, arrebatadora certeza – de jamais sermos suficientes, meu imenso amor por você, completamente desperdiçado e inútil, as aulas que a Mary W. dá na rede social e que são perdidas conosco, esse bando de imbecis que não a merecem de jeito algum, a linda tiara de flores e cristais da Suzi que eu, sinceramente, devia usar todos os dias só porque é bonita, o grau dos meus óculos que acaba de subir, a Andréa Espíndola me escrevendo no exato momento em que escrevo o nome dela nos agradecimentos do livro, o monstrinho que desenho em papel sulfite enquanto me iludo que o que tenho é uma carreira em construção, o texto novo do velho Nelson Moraes. Aquarius é sobre dor e solidão, sobre a loucura que nos assalta a todos, sobre as músicas que nunca ouviremos de mãos dadas, os passos que não podemos fazer recuar, os rostos de que não consigo me lembrar, as escolhas burras, burras (as suas, as suas), a violência que se retroalimenta, a Ângela me dizendo, cheia de razão, que essa toada de vereador me fode, a voz do veterinário na mensagem, a falta que sinto do meu irmão e que faz um buraco no meu coração que nunca vai sumir, o suco de limão, sua dupla negativa, o desamparo, os exames de DNA que não existem e não catam os bandidos, a igualdade que não vem para todos, a moça condenada a eternamente limpar a cafeteira, os militantes negros mortos no chão, os cigarros que não fumamos na juntos varanda – você não fuma, seu tonto –, as inúmeras formas que inventamos para morrer e amar, o final que se repete, o medo da queda, o alívio da queda. O alívio. Aquarius é sobre tudo aquilo de que não queremos falar porque a dor é insuportável, a vida breve, o tempo cruel e não tem CSI Miami que nos tire dessa encrenca. Estamos a salvo agora, nossa cretinice pode seguir quase despercebida, obrigada, não haverá terceira temporada de Aquarius, graças a Deus.
Não assisti Aqyarius, veja só como estou atrasada. Mas talvez seja bom, não sei se dou conta disso tudo. Nesse momento eu penso apenas na poda da minha rosa do deserto, na sopa de legumes perfurmando a cozinha, no joelho do meu cunhado, no cansaço da minha irmã, no aromatizador com cheiro de cangote de bebê e em palavras que sejam como um afago com o dorso da mão, somente nisso consigo pensar, o mundo é grande demais, complexo demais, dolorido demais, só isso e já me sinto exausta.
(não sei mais com o quê eu estava tão indignada, mas certamente eram bons os motivos)
eram bons os motivos, queri, pq vc tem sempre razão. <3