por Rita Paschoalin
Oswald, Carlos, Mário. O sobrenome Andrade aparece fácil nos índices remissivos da arte brasileira. O culto pelos Andrades nasce cedo, lá no fundão da sala de aula. Sempre masculino, o sobrenome dita a trilha da leitura modernista do país: siga por Pindorama, insulte o burguês, tenha nas mãos o sentimento do mundo.
No entanto, anos antes de nascer o menino de Itabira ou de se acenderem os escândalos do amor intransitivo, e antes de clamarem que só a antropofagia nos salvaria, o nome Andrade já tinha feito casa nas artes deste país confuso. Num tempo em que os manifestos que inauguraram a modernidade por aqui ainda não tinham sido proclamados, o nome Andrade já traçava não o verso no jornal, mas o pincel nas telas, e deixava um rastro mais sutil do que a pedra no caminho.
Pode-se divagar livremente sobre as razões da invisibilidade feminina na história oficial da arte mundial no século XIX. O fato é que “o” Andrade que pisou o campo das artes antes de nossa tríade mais famosa era, na verdade, uma Andrade.
Quem circulou pela 26ª Exposição Geral de Belas Artes no Rio de Janeiro, em 1884, teve acesso a quase quatrocentas obras de setenta e cinco artistas. Era um ano de grandes transformações aqui e ali. Ceará e Amazonas aboliam a escravidão, o que só ocorreria quatro anos depois no restante do país; a Europa fatiava o continente africano. No Rio, a 26ª Exposição Geral foi a última — e a maior — realizada durante o Império, cinco anos antes da derrubada da Monarquia. A ocasião foi glamourosa, e o catálogo da exposição, custeado por uma renomada galeria de arte do Rio, foi ilustrado por esboços feitos pelos próprios artistas expositores. A grandiosidade do evento foi repercutida pelos principais jornais da época e prestigiada por notáveis críticos de arte.
Entre muitos outros, o elenco de artistas da grande exposição de 1884 incluía nomes como Pedro Américo, o paraibano que logo pintaria seu célebre Independência ou Morte, e Zeferino da Costa, autor das pinturas da cúpula na Igreja da Candelária. Abigail de Andrade, uma moça de apenas vinte anos, natural de Vassouras/RJ, foi uma das quatro mulheres entre os setenta e cinco artistas da exposição. Dentre pinturas, cópias e estudos de desenho, Abigail exibiu quatorze obras no maior evento de artes do Segundo Reinado.
Apenas oito anos depois, em 1892, as mulheres passariam a ter direito de frequentar a Academia Imperial de Belas Artes. Na época da exposição, Abigail estudava há dois anos no Liceu de Artes e Ofícios do Rio, que desde 1881 aceitava alunas na escola. Em linhas gerais, as mulheres artistas da época contavam apenas com aulas particulares ou eventuais aulas livres oferecidas pela AIBA.
Mesmo sem acesso à formação oferecida pela Academia Imperial, Abigail foi agraciada com a Primeira Medalha de Ouro da grande exposição de 1884, graças ao destaque conseguido pelas telas Cesto de Comprase Um canto do meu ateliê. Foi a primeira mulher a ganhar a medalha, e gosto de pensar que ela rompeu limites e abriu uma janela que nos mostraria, no século seguinte, as cores de nomes como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral.
Ainda que seu nome não apareça em nossos índices com a mesma assiduidade de outros Andrades que amamos, uma espiada em reproduções das telas de Abigail pode nos surpreender. É fácil imaginar que o silêncio em torno de seu nome reflita mais o espaço negado às mulheres nas academias de arte no século XIX do que a qualidade de seu trabalho.
Imagino os críticos de arte do salão em 1884 diante da variedade de materiais retratada em Cesto de Compras — a madeira da mesa, o metal das moedas, a palha do cesto, as raízes das hortaliças sobre a gaveta esquecida aberta por quem correu para pintar outra luz, uma paisagem, um retrato, romper outro limite. Abigail existiu, foi Andrade, pintou, desenhou e fez da arte profissão, um feito e tanto para uma mulher de seu tempo.
Abigail também amou. E escandalizou, como as personagens do amar intransitivo do outro Andrade. Mudou-se para Paris na companhia de um amor proibido e lá, na terra da arte e da luz, morreu em 1890. Tinha apenas vinte e seis anos. O alvoroço em torno do romance com o celebrado cartunista Angelo Agostini encerrou a convivência de Abigail com a comunidade artística e ajudou a apagar seu nome de nossos índices.
Mas sempre há tempo. Talvez mais humana do que a moral, a arte resiste. E aí penso no cinema, que adora nos jogar nos salões e suores do século XIX — que belo filme não daria a vida de Abigail?
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Infelizmente, as telas de Abigail de Andrade atualmente compõem coleções privadas e se encontram (ainda) inacessíveis ao grande público.
Da união de Abigail de Andrade com Angelo Agostini, nasceu Angelina Agostini, também pintora (1888-1973). Angelina fixou-se em Londres a partir de 1914 e expôs em importantes galerias da Inglaterra e da França. Retornou ao Brasil na década de 1950 e foi agraciada com Medalha de Ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1953. O quadro Vaidade, pintado por Angelina em 1913, integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio.
Rita Paschoalin lê, traduz e escreve. Acredita piamente que só a arte nos salva e nos justifica.