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A chorir

por Andréa Pontes

Cartola – 1976

Angenor de Oliveira, Cartola, vivo fosse, poderia ser questionado se o verbo sorrir ainda cai bem em O Sol nascerá. Afinal, estamos mais chorando e rindo de nervoso enquanto levamos a vida. Não é para menos.

Há quem diga que é inevitável a quebradeira de empresas. Mesmo o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) ficando em 0.23% e o mercado ficando confiante, projetando uma queda para a inflação, de 5,69% para 5,42%.  Mesmo a Petrobras reduzindo o preço da gasolina em R$ 0,13 o litro.

Isso porque ainda é preciso baratear mais os preços dos carros. As reformas precisam andar e as negociações políticas estão na mesa.  E, como o 7 x 1 never ends, somos apresentados à febre maculosa e ao carrapato que transmite a bactéria do gênero Rickettsia. Se já é difícil pronunciar, precisamos compreender que a Rickettsia rickettsi é a mais grave, e a Rickettsia parkeri, a mais leve. Os carrapatos são do gênero Amblyomma. Não, não é para espremer o tal carrapato.  É o CSI Carrapato.

Murphy acha pouco. O trem não funciona, a fila pelas cirurgias Brasil afora, a violência contra idosos. Não há saúde mental que aguente. Agressão gratuita por nada ou muito pouco. Buzinas, xingamentos, empurra-empurra no transporte público. Um minuto a mais em uma espera qualquer nos tira do sério. E há explicação para isso. Tensão, estresse, trânsito, noticiário pesado – e nem chegamos nos problemas de cozinha, hein, esses aí, de casa, de família. Enfim, tudo isso leva menos oxigênio ao cérebro, respiramos mal e bingo… quando a gente nota, está falando mais alto, gesticulando, não deixando para lá. Depois que o estresse passa, a gente não se reconhece. Não por acaso vemos pessoas que chegam a matar o outro por futebol e depois nem sabem como chegaram a cometer tal crime.

Com tudo o que está acontecendo, é possível sorrir?

É uma questão de escolha, my friend. Você pode continuar chorando. Eu sou do time que pelo menos rir e chorar já é melhor do que somente lágrimas. Cartola também. Nosso Angenor, aos quinze anos, foi convidado a se retirar de casa pelo pai. Vivia pelas ruas. Arrumou emprego de tipógrafo, depois se tornou pedreiro. Usava um chapéu coco – daí o apelido de Cartola. Conheceu a Deolinda, vizinha de barraco. Foram viver juntos e Cartola assumiu a filha dela do outro casamento.

Em uma noite de bilhar, juntou-se a Noel Rosa, Francisco Alves.  A vida parecia engrenar pelas composições musicais. Logo viria Murphy, Deolinda morreu, Cartola pegou meningite, passou a lavar carros. Foi redescoberto por Sergio Porto e, então, Dona Zica, irmã de Carlos Cachaça, o trouxe de volta à Mangueira. A vida voltava a mostrar simpatia pelo chapéu coco.

Talvez por isso, em 1961, veio a composição O Sol nascerá, que povoa rodas de samba até hoje e ganhou as vozes famosas de Elis Regina, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Zeca Pagodinho e Teresa Cristina, entre tantos outros. Cartola tomou a decisão de sorrir,  diante de uma vida simples, pobre, cheia de infortúnios. Pois foi chorando que viu a mocidade perdida, com viuvez, expulsão de casa, doença.  Angenor Cartola via poesia no dia a dia desse caos. O nosso tipógrafo, lavador de carros, pedreiro compôs As rosas não falam porque Dona Zica ficara perplexa com tantas rosas que nasceram no jardim, com as mudas que o marido lhe deu de presente.  

Um Cartola só nasce uma vez. Mas, podemos ser um pouquinho Angenor.  Então, você aí, que está na plataforma do trem que está vindo lotado, respira, pega o aparelho celular e busque por O Sol nascerá. Já emenda em As rosas não falam

Comece a chorir.

A vida está te filmando.

1 comentário em “A chorir”

  1. Muito bom, não há forma melhor do que misturar. Um pouco de riso e também de choro. Pois a vida é assim, autêntica! Parabéns pelo texto.

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