por Raquel Azevedo
Na véspera do fim do mundo, o gato preto te acordou vinte minutos antes do alarme tocar.
Na véspera do fim do mundo, você improvisou o lanche da menina, pois já não havia pão.
Na véspera do fim do mundo, você deu carona para a filha da vizinha.
Na véspera do fim do mundo, vocês se atrasaram cinco minutos.
Na véspera do fim do mundo, você teve que buscar o telefone que havia esquecido na Best Buy no dia anterior.
Na véspera do fim do mundo, você fez serviço de detetive para um homem que demonstra confiança inusitada nos seus talentos.
Na véspera do fim do mundo, você notou com compaixão e deferência os fios brancos que teimam em aparecer em suas têmporas.
Na véspera do fim do mundo, você recebeu um postal endereçado à sua irmã.
Na véspera do fim do mundo, você lavou três máquinas de roupa e trocou as toalhas e lençóis.
Na véspera do fim do mundo, você se sentou para que sua filha se deitasse no seu colo e acariciou os cabelos dela como há muito não fazia.
Na véspera do fim do mundo, vocês cantaram juntas a música que ela escolheu para celebrar a companhia do primo.
Na véspera do fim do mundo, você meditou sozinha e com três grupos diferentes.
Na véspera do fim do mundo, você fracassou em definir o que significa ser uma imigrante nos Estados Unidos da América.
Na véspera do fim do mundo, você escolheu revestimentos para os banheiros e riu da empáfia dos nomes das tintas da Farrow & Ball.
Na véspera do fim do mundo, você pagou todas as contas que vencem até o dia quinze.
Na véspera do fim do mundo, você conversou com cinco dos seus seis vizinhos, mas só foi capaz de confortar um deles.
Na véspera do fim do mundo, você compartilhou memes e figurinhas.
Na véspera do fim do mundo, você leu num pôster pregado na vitrine da loja de brinquedos que o caminho se faz enquanto se caminha.
Na véspera do fim do mundo, você preencheu seu primeiro “FOIA request”.
Na véspera do fim do mundo, você optou pela playlist que fiz com sua irmã para o aniversário de oitenta anos do pai de vocês.
Na véspera do fim do mundo, você saiu especialmente para comprar um Brunello de Montalcino para acompanhar a massa fresca com molho à bolonhesa da Marcela Hazan.
Na véspera do fim do mundo, você ganhou duas latas de favas egípcias, que lembram feijão-fradinho.
Na véspera do fim do mundo, você trocou a areia dos gatos, aplicou o remédio de pulga na cadelinha e deixou que os quatro ficassem no seu colo até o inevitável ataque de Felícia.
Na véspera do fim do mundo, você se assustou com um helicóptero que voava muito baixo.
Na véspera do fim do mundo, você chorou com a Bridget Everett ao piano e riu com a cerimônia de naturalização do Jon Oliver.
Na véspera do fim do mundo, você decidiu não escutar um podcast de notícias sequer e nem verificar a metereologia.
Na véspera do fim do mundo, você teve a chance de tirar várias fotografias das casas que mais gosta.
Na véspera do fim do mundo, você leu e sublinhou “Pacto”, poesia tão reta da Inês Campos.
Na véspera do fim do mundo, você descobriu que usou o último rolo do último pacote de papel higiênico (esse arauto do apocalipse).
Na véspera do fim do mundo, você aproveitou a água que sobrou na chaleira para molhar as flores da varanda, driblando a proibição da prefeitura.
Na véspera do fim do mundo, você fez muito do que faz e deixa de fazer todos os dias porque, ainda que você finja esquecer, o mundo acaba e começa de novo a cada momento. O que te resta é persistir na intenção e na entrega de gestos, mesmo miúdos, de amor, compaixão e conexão, consigo e com os outros.
Muito bom!
Nao esta facil viver nesse mundo.