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Onde o verbo se faz carne

por Suzi Márcia Castelani

Pertenço a uma geração que sabe que perdeu.

Não há tempo suficiente em nossas vidas para o longo exercício de virada que possibilitará o retorno à civilidade.

Porém, trabalhamos com a linguagem e ela nos possibilita o registro do tempo atual que hoje reflete nosso absoluto contraponto ao discurso oficial.

O poder responsivo da linguagem é a única arma da qual dispomos e faremos uso dela como tantos outros o fizeram antes de nós. Para esta tarefa, a importância dos saberes que nos precederam é gradativa em escala ascendente e só poderemos dizer o nosso tempo lançando um olhar de genuíno interesse sobre quem já viu o mundo e o retratou em diferentes épocas e nas várias linguagens da subjetividade humana.

O teatro é uma dessas linguagens e seu poder de alcance pode ser medido pela violência com que o autoritarismo sempre o atacou. O dramaturgo tem o poder de propor realidades e os atores de encená-las. Uma nova época, um novo mundo, uma nova forma de convivência acontecendo no palco, aos olhos do público que acessa a ideia posta e, perigosamente, pode se perguntar:

E, se…?

O autoritarismo reconhece na arte mais que uma forma de saber. Intuitivamente, pois carece de estrutura para um pensamento formal, entende sua capacidade de mobilização e age da única maneira que conhece, reprimindo.

Todas as vezes que a repressão, o conservadorismo do atraso e o pensamento obscuro tomaram o poder, o teatro brasileiro se impôs em absolutas obras primas escritas por autores nacionais.

Foi assim em 1943 com Vestido de Noiva de Nelson Rodrigues:

Eles Não Usam Black Tie em 1958 de Gianfrancesco Guarnieri:

O Rei da Vela escrito por Oswald de Andrade em 1933 e encenada em 1967 no teatro Oficina por José Celso Martinez Corrêa:

Três peças que promoveram mudanças importantes na linguagem teatral do país, colocou a gente brasileira no palco com suas mazelas, sua moral cotidiana e suas discutíveis relações de classe e trabalho.

A muitos autores, atores e diretores desta época, o fazer teatral com opinião e subjetividade custou o exílio e a consequente derrocada dos espaços da arte que ressurgiram nos anos 1980 com grupos de artistas de grande talento mas não mais dispostos a pagar tão alto preço por denunciar as dores do seu tempo.

Passamos então a falar de juventude, bom humor, interpretação despojada e criação coletiva. Jovens desconstruindo textos clássicos para falar de si mesmos numa bela e necessária maneira de existir naquele momento.

Já falamos de flores num recorte temporal que permitia. A proposta agora é absorver a realidade massacrante dos nossos dias e devolver, em linguagem, um mundo como gostaríamos que fosse. Fundado em saberes, confrontado por evidências e buscando uma direção que comporte a caminhada de todos, no mesmo passo.

O momento da denúncia passou. Nossa geração precisa encontrar uma forma de registrar, para as gerações seguintes, que nem tudo neste momento é pulsão de morte, barbárie e afronta. Que alguém, ao se debruçar sobre nosso tempo, encontre, nas muitas expressões da nossa subjetividade, desejo de vida, de igualdade e de justiça que, enfim, sobreviva a todos nós.

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