Eu me lembro da Mére Cristol falando de Mon Oncle, num parênteses da aula de religião, há algumas décadas.
Fui ver o filme da mesma forma que eu ia à missa: dever de ofício.
Em alguns domingos, logo depois do almoço, eu rumava para algum cinema do bairro para a matinê.
Quando eu era menina todos os bairros tinham cinema, geralmente mais de um.
Ao voltar para casa, mamãe perguntava sobre o filme e eu narrava, com requintes de detalhes que beiravam a tortura. Ela me ouvia circunspecta, aprofundando vez ou outra a ruga entre os olhos.
Não depois da conversa sobre o filme de Jacques Tati.
Senti que algo escapava à mamãe por falta de competência minha em falar do que vira.
Eu não sabia como descrever o que a tela mostrou ao apagar das luzes.
Narrei, mais ou menos na sequência, as aventuras do menino e seu tio mas havia todas aquelas nuances de cinza e os espaços vazios – tão diferente daquilo que Hollywood nos mostrava.
Também a ironia fina que não se escondia nem mesmo ao olhar tosco de uma menina que começara o ginásio.
Pela primeira vez pude me identificar com uma personagem do cinema.
As comédias românticas traziam heróis que eu achava velhos ou que tinham um jeito de viver diverso demais do nosso, como as histórias de fada que eu lia.
Naquele tempo, dez anos dopo guerra, eu não conseguia me aperceber do fim de um estilo de vida. Tati anunciava a nova Paris, nova ao som do jazz contrapondo-se à velha Paris embalada pelas canções ligeiras tão francesas.
Há também no filme poesia, cada tomada é um verso e isso impressionou a alma e a mente de quem se expunha ao olhar vago específico (expressão de Millôr Fernandes) do cineasta francês.
Ganhei uma coleção de filmes de Tati e, por isso, voltei à infância.
Marli Tolosa, psicóloga e pesquisadora