Dos quatro evangelhos resultantes da seleção do Concílio de Trento (1545-1563), Mateus, Marcos, Lucas e João, os três primeiros são sinóticos, podem ser abordados a partir de um único olhar, pois se repetem e complementam. Inclusive com falhas e contradições notáveis.
Mateus, por exemplo, coloca Jesus numa linhagem que tem início em Abraão e omite gerações para atingir a numerologia judaica do rei Davi.
Em outra passagem, assenta o nascimento de Jesus sob o reinado de Herodes, enquanto Lucas o situa no momento de recenciamento ordenado pelo imperador Augusto.
Aliás, este é um dos pontos em que o cristianismo sempre se lasca, pois se tem coisa que romano fazia bem, era registrar.
Se Herodes morreu em 4 a.C. e o censo do imperador Augusto data de 6 d.C., dez anos separam as duas únicas referências cronológicas dos evangelhos. Alguém do Concílio de Trento deixou passar essa.
Santo Agostinho, que já foi autoridade dentro do cristianismo, afirmava que Marcos era uma cópia malfeita do evangelho de Mateus.
A discrepância nos evangelhos está em João. Não de conteúdo, mas de forma.
Quando chegamos em João, o último dos quatro evangelhos, o relato da vida terrena de Jesus se interrompe e somos remetidos a antes da criação, a tempos imemoriais, quando o espírito pairava sobre as águas.
Enquanto Mateus, Marcos e Lucas fizeram os blogs do Nazareno, com direito a self na manjedoura, recebidinhos dos Reis Magos e parto humanizado, João optou pela poesia.
Aqui ninguém me pega, deve ter pensado. E tava certo.
Ao optar pela poesia, João suprimiu Maria, José, os reis magos e os burrinhos todos. Ele vai do Verbo a João Batista sem fazer nenhuma menção terrena ao nascimento do filho de Deus, evitando para sempre que, no futuro, ateus empedernidos apresentassem dados históricos incontestes ao seu testemunho.
Os trechos:
No princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por ele e sem ele nada do que foi feito se fez.
(…)
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
Podem ser uma afirmação e testemunho do nascimento do filho de Deus, tornado carne em forma humana para redenção dos pecados do mundo.
Ou, a aclamação da palavra como verbo divino, condução de pensamento e forma sagrada de registro da arte e saberes para aprimoramento da espécie.
Eu me agarro em João, na sua poesia e na intenção sublime de suas palavras ao dizer:
Nele (no Verbo), estava a vida e a vida era a luz dos homens.
Sim, no verbo está o que ilumina, esclarece, torna evidente pela palavra, informa a existência e contrapõe os argumentos para análise.
Que este seja o momento de aceitar o Verbo, fazê-lo carne e deixar que habite para sempre entre nós.
Feliz Natal!