por Patrícia Daltro
Trago hoje um reconto. Em prosa meio corrida, é a saga de um menino, que os homens deram por nome João Guimarães Rosa. Veio de trasdosmontes, de terra Codisburgo. Homem amante das línguas. Da escrita e da falada. Sabia mais que dez. E mesmo assim, não contente, trazia dentro de si, a falta dessa palavra.
Boquiaberte-se não, seu moço. Que lá o que falo tem raiz funda. Se digo que seu Rosa era um homem a quem faltavam palavras, não é falastrice da minha parte.
A prosa do seu Rosa não se cabia no abecedário que a gente aprende na escola. Ela é viva. Se apequena e agiganta naquilo que queria ser dito. É bicho rastejante no terreno áspero do nosso falar, ao mesmo tempo verdeja e explode sanhuda no nosso ouvir.
Ela é maior que eu, que vosmecê, maior até do que ele. Faz parte da história contada, não como parte daquilo, mas como se aquilo fosse.
Quem diria que um menino iria crescer um tanto. Destamanho que não se cabe nem dentro desse mundo enorme. Começou guri curioso, virou moço bem letrado, foi doutor e diplomata. Diz que levou o sertão pro mundo.
Mas.
Engana quem acha que o Sertão tava dentro dele. O Sertão está em toda parte. Disse, e redisse tantas vezes. E na querência de explicar o sentir sentido das emoções que nos faz esse bicho esquisito e a amplitude dessas veredas, ia lá no barro vermelho e era um tal de molha, aperta, estica, molda e esculpe tudo que queria dito.
Perceba que não é taramelagem da minha parte. Se faltavam dizeres, seu Rosa as modelavam. O escrito era reescrito e desescrito, de modo que luzluzissem e clareassem sua prosa.
O homem e o sertão são um só, circuntristes dentro de sua amplitude. Quase qual o sertanejo que se acanoa e segue rio acima e rio abaixo. Presente e à margem de si mesmo. A prosa de seu Rosa transformava o falado em personagem.
Mas, me perco de mim mesmo. É um tanto de dizer que nada digo. Entenda.
O rio que corre em mim é o mesmo sangue que esbombardeia a obra de Guimarães. Tem lá qual sua nascente, sinesguia-se pelas beiras, ora minguado, ora transbordante. Num fluxo desarrazoado, e no entanto, perene.
Também sou personagem dentre as sagas que ele conta. E quando aqui me aboletei, pedindo um naco de carne e um tique de bebida, danei a falar um tanto. É que esse homem me assombra, tenho cá os meus motivos. Já disse sou cria dele. E mais nem posso falar. É segredo inconfessável. Fui sinônimo de amor. Puro, forte, intenso e aflito. Amor que é. Neblina. De novo me labirinto. Perdoa em mim a safirentice que volto ao ponto do nó.
Glossário – Guimarães Rosa:
Circuntristeza – Como a própria palavra sugere, refere-se à “tristeza circundante”. Ficou para o final por ser o meu neologismo favorito.
Luzluzir – fazer reluzir
Safirento – agitado, excitado, assanhado. Safirentice – ato ou efeito de agitar-se.
Sanhudo – furioso, insaciável
Taramelagem – tagaralice, falatório
Glossário – Patricia:
Sinesguia – algo sinuoso e esguio (neologismo)
Glossário
Esbombardear – ato ou efeito de bombear.
Patricia Daltro é artesã e escritora. Ela pode ser encontrada aqui: http://avidasemmanual.blogspot.com/