por Fal Azevedo
Quando ele nasceu, em 24 de novembro de 1864, o conde Alphonse de Toulouse-Lautrec-Monfa e sua esposa, Adéle Tapié de Céleyran, tinham grandes planos. Um menino. O primogênito duma linhagem que vinha desde a idade média casando primos com primos para garantir a pureza da raça e para manter a grana na família. Acontece que beijar primo dá sapinho e pode também atrapalhar todo aquele negócio de DNA. Henri nasceu com uma doença genética que o faria carregar nas costas e pernas de ossos frágeis o peso de tantos casamentos consanguíneos. A doença se chama Pycnodysostosis, mas depois ficou conhecida como “Doença de Toulouse-Lautrec” porque nossa crueldade não conhece limites. Era um menino com crescimento lento e restrito (adulto, ele ficou com algo em torno de 1,50m e ossos de passarinho).
Lautrec nasceu em Albi, uma cidade que já existia antes mesmo dos romanos. Advogo a causa de que Henri, também. Ele já existia antes de todos nós e do mundo que inventamos e destruímos no século XX, antes de todas as nossas teorias sobre comunicação, nossos protocolos de atendimento e dinâmicas em busca de catarse e redenção. Henri existia antes de si mesmo e de todas as coisas que realizou.
Ele não pôde se tornar um cavaleiro e falcoeiro como o pai. Mas como seu velho, amava a arte e, depois de algum tempo sob a tutela do pintor René Princteau, aos dezesseis anos foi enviado a Paris para trabalhar como aprendiz no estúdio do pintor Léon Bonnat e, depois, no ateliê de Fernand Cormon, que ficava no coração de Montmartre – o bairro que despontava como a Lapa da Paris do fim do século XIX: profissionais do sexo para todos os gostos, preços possíveis, drinques exóticos, garçons gentis.
Henri era um rapaz viril, vinha de uma infância de cuidados e superproteção e já não duvidava de seu talento. Ele caiu na gandaia? É claro que ele caiu na gandaia.
Sem a grana da família para comprar telas e pincéis (resignados ante o talento e a porra-louquice do filho, alguns anos depois os pais voltariam a financiá-lo), mas cheio da audácia da juventude, Henri abocanhou Paris em busca de aventuras. No começo dessa nova vida, Lautrec foi morar em Montmartre com seu amigo, o pintor René Grenier. Lá pelas tantas, acabou sendo vizinho de prédio de Degas, um pintor que adorava a cena urbana e que o influenciou, primeiro como o impressionista que era, depois, pelos temas cosmopolitas, intimistas e, de alguma forma, sombrios. Agora vou fazer uma pausa procê pensar nas reuniões de condomínio desses danados.
Lautrec desenhava o que via. Gestos, olhares amorosos, propostas insinuadas, luxúria, pernas em coreografias deliciosas, combinações aparecendo, penteados plumados, olhos pintados, prostitutas gorduchas e cansadas esperando clientes muquiranas, cavalos apressados, cenas domésticas, sussurros trocados debaixo da colcha, pessoas, pessoas, pessoas, vida por todo lado. Ele dizia não interpretar, apenas registrar. E nós fingíamos concordar que em cada imagem não havia mesmo interpretação, talento, releitura da realidade e perspectiva porque queríamos conviver com Henri, gravitar ao seu redor e, claro, beber com ele.
Com o traço liberto pelos predecessores impressionistas, Lautrec liberava também suas mulheres e homens do academismo e inventava, a cada pincelada, uma nova forma de expressão visual: urbana, fluída, sensual e colorida. Gostava das ruivas, lavadeiras e putas, mulheres comuns e cantoras, gostava dos boêmios, dos dramas, dos amores reais ou inventados, da birita, do namoro, de se sentir valorizado e importante para além de sua aparência, de sua família rica, de seu sobrenome importante. Henri era amado e odiado também, admirado por seu imenso talento e senso de humor. Não por acaso, Lautrec foi um dos pais do cartoon.
Pela década de 1880, ele vendeu telas, fez ilustrações para revistas e seu estilo foi se tornando mais conhecido. Quando, no começo dos anos 1890, o dono do Moulin Rouge, irrepreensível casa de divertimento adulto que Henri frequentava desde a inauguração dois anos antes, pediu a ele um cartaz para anunciar umas das atrações do lugar, ele criou Moulin Rouge: La Goulue.
Sucesso. Sucesso. O cartaz foi aclamado. Daí em diante, seus cartazes são amados e disputados pelas pessoas comuns, que os arrancam das árvores para levá-los para casa. O cartaz projetou Lautrec para o púbico em geral, para os trabalhadores e burgueses de Paris, e ele foi saudado como o artista inovador que registrava uma era, o estilo de vida da Belle Époque.
Lautrec continuou a pintar e produzir nos anos seguintes, a ser feliz e triste, a usar a cor livremente em sua obra, a atacar a moral vigente a cada nova tela, a produzir desenhos livres com um lado sombrio, a tomar porres homéricos e passar por internações (os pais sempre cuidaram dele). Uma vida, enfim, cheia de coisas incríveis e outras não tanto. A vida de todo mundo.
Afastando-se do aviso que anos antes o pai lhe escrevera à guisa de dedicatória em um livro, que aqueles que se afastam da luz do sol tendem a perecer, e dando as costas ao ar livre tão amado por seus predecessores impressionistas, esse pós-impressionista (haha) abraçou a luz artificial, os ambientes barulhentos e enfumaçados, as prostitutas ruivas e magricelas e deixou uma produção artística que mudou para sempre a arte que nós veríamos e faríamos.
Adoro o drama do “pobrezinho, buscava alívio para limitações e tristezas no álcool, nas drogas e nas mulheres, pois todo sujeito de vida airada e piadista no fundo esconde dor e amargura”, mas sejamos francos: pesares, temos todos. O mais aborrecido e vida-certinha entre nós carrega deformidades e angústias tão cruéis quanto o mais criativo, desajustado ou marginal. Nossa superioridade distorcida não justifica a mediocridade de nossa vida e não nos torna, realmente, melhores do que Lautrec. Considerá-lo um “coitadinho”, é confortável, mas patético. Ele tinha lá seus problemas. Tinha mesmo. Temos todos.
m 1901, com o século XX, feroz e destruidor, rugindo lá fora, Henri morreu de alcoolismo e sífilis e vida e dor e tesão e riso e putas bonitas e escuridão e tristeza, deixando uma obra admirável e enorme. Aos trinta e seis anos, ele morreu cedo demais, ele morreu no momento certo.
A turma de Lautrec
por Fal Azevedo
As últimas duas décadas do século XIX foram anos de criação e desbunde na Europa, porque esse século conheceu um desvario de invenções e mudança de estilo de vida nunca dantes navegados. Paz relativa, dinheiro rolando, a revolução industrial e o consequente desenvolvimento dos meios de transporte, de comunicação (telex, cinema, máquina fotográfica, a prova da existência das ondas de rádio, o telefone, o cinematógrafo), sem falar na tinta em bisnagas de estanho, no Manifesto Comunista, na unificação italiana, nas turbinas a vapor e eólica, no motor de quatro tempos, na dinamite, nos patins com rodas, e sabe-se lá mais o que, garantiram que inventássemos uma vida nova e sonhássemos com o futuro. Depois de Darwin, Schubert, Dickens e Austen, tínhamos Zola, Freud, Renoir, Mahler, Conan Doyle, os Strauss, aqueles impressionistas malucos e, então, Lautrec.
Ele dividiu o fim de século com esses caras, e foi amigo de alguns deles, como Degas, Dihau, Jane Avril, e Van Gogh. Essa turma nomeou cores e sentimentos, inventou e descobriu universos, esboçou nossos próximos passos e, claro, profetizou todas as bobagens que faríamos dali a pouco, com a chegada do século XX.
Fal Azevedo é uma escritora da safra de 1971. Além disso, tem um cãozinho, quatro gatos e o Chico, que mais do que um gato, é um patrão.