As primeiras décadas do cristianismo foram dedicadas à produção da sua literatura.
Visões, revelações, códigos de conduta, o que foi reunido na Bíblia que conhecemos é uma pequena seleção entre o que foi produzido a partir de Cristo e até mesmo antes dele.
Deus e o Diabo, por exemplo, não nasceram exatamente como hoje pregam as igrejas.
No Antigo Testamento, a bíblia judaica, o termo “Sheol” designa o sombrio e subterrâneo local dos mortos, para onde iam os maus, mas também os bons, pois o Deus do Velho Testamento não deixava para depois, punia os homens ainda em vida.
Foi o Novo Testamento que inaugurou o inferno como o conhecemos. Local dos excluídos, punição dos maus, destino de infiéis.
Clemente de Alexandria, um teólogo grego que viveu aproximadamente entre os anos 150 e 220, pagão de nascimento, aproximou-se do cristianismo por meio da filosofia. Clemente menciona os textos de Platão sobre os castigos do além e a esperança de outra vida em sua obra “Os Estrômatas”. Ele rejeitava a ideia da punição pelo fogo e a noção do Diabo como chefe dos demônios. Para ele se tratava apenas de uma “alma maligna”.
O Deus de Clemente de Alexandria era infinitamente bom e justo, praticando punições meramente educativas num quadro onde todos os justos da humanidade poderiam contar com a felicidade eterna, prescindindo de conversão e aceitação de Jesus.
Outro teólogo alexandrino, Orígenes (185-253) tomou, em seguida de Clemente, o lugar de grande erudito da teoria alexandrina. Ele também acreditava na grande bondade e misericórdia de Deus. Desenvolveu a tese de Clemente da restauração final (chamada por ele de “apocatástase”) segundo a qual toda a humanidade seria salva.
Também rejeitou o suplício do fogo aplicado aos maus pelo demônio. Para ele não era um fogo material, mas espiritual, usado para purificação das almas. As almas seriam torturadas pela tomada de consciência dos seus pecados e purificadas pelo arrependimento.
Mas a hierarquia católica, já vigente, não concordou com isso, não. Achou várzea demais.
Nos séculos seguintes, a doutrina alexandrina foi atacada com vigor pela Igreja, que buscava sua hegemonia na Europa. Em 553, no Concílio de Constantinopla, a doutrina de Alexandria foi amaldiçoada. Grande parte da obra dos teólogos foi destruída.
A partir daí, a visão do inferno que foi considerada pela Igreja Católica e permaneceu inalterada na Reforma de Lutero, passou a ser a de Agostinho, Bispo de Hipona e gênio do cristianismo latino.
O Inferno de Agostinho não dá colher de chá.
Não há salvação para todos e a humanidade herda, geração após geração, o pecado de Adão e Eva. Somos culpados e condenáveis.
Passamos a vida trabalhando a salvação, que não é para todos. E falar da salvação de um pequeno número é falar da danação da maioria.
Agostinho coloca o Juízo Final como uma série contínua de juízos que começa com a expulsão do Paraíso, passa pela separação dos bons e dos maus e termina no Apocalipse.
E depois do Juízo Final, no seu livro “A Cidade de Deus”, Agostinho carrega nas tintas:
“De todos os males, o pior: essa morte que não procede mais da separação da alma e do corpo, mas da eterna união de ambos, em sofrimentos eternos. É então que os homens não estarão mais antes da morte e depois da morte, vale dizer, jamais vivos, jamais mortos, mas morrendo sem fim.”
Agostinho falou tudo sobre o inferno, só não deu o endereço. Disso cuidou o papa Gregório, o Grande (540-604). Segundo ele, o inferno é “subterra”, como estava o “Sheol” hebreu. Um abismo profundo, tão distante quanto possível dos céus. Seus habitantes não são sombras, mas sim condenados pela justiça divina a sofrer torturas eternas.
A partir de Agostinho e Gregório, o Grande, o cristianismo colocou no centro de sua teologia o pecado e suas consequências.
Isso moldou toda a forma de pensar do ocidente. Fomos formatados a conceber o mundo de forma maniqueísta. Separamos bons e maus por muros e por cores, conferimos às pessoas características divinas de deuses e demônios. E ao aceitar o pecado original como herança, garantimos a existência do inferno como destino e justificamos a submissão total ao Criador.
Não há espaço para raciocínio e lógica. É a simplificação do pensamento na sua forma mais rasa.
É realmente uma pena que a estruturação da literatura cristã não tenha seguido o caminho da justaposição de ideias e do argumento entre contrários, pois, ao se sobrepor como pensamento dominante por força, nos legou um inferno adicional: a subserviência a um pensamento único determinado por temor e perpetuado pela ignorância.
Também dói e sim, parece eterno.