Não havia, em minha infância, tantos livros quantos estão disponíveis para as crianças hoje em dia. As editoras publicavam edições adaptadas. Por isso minha geração leu uma porção de clássicos: A ilha do tesouro, Robinson Crusoé (era escrito assim mesmo), As viagens de Gulliver, A história do mundo para crianças, Novelas extraordinárias e mais outros e outros conformados a diferentes idades.
Resumida e facilitada, Alice entrou na minha vida e nunca mais saiu.
Relutei um pouco a assistir a versão do Tim Burton, mas acabei capitulando.
A angulação desse diretor, mesmo mantendo passagens da narrativa de Lewis Carrol, mostrou o olhar, experiências e descobertas comuns à adolescência.
Não só ele faz a mocinha fugir do compromisso firmado pelos pais, como mostra a ruptura com as normas familiares de comportamento, o estabelecimento de um código próprio e a transposição de um punhado de dificuldades severas, emprestando a Alice um caráter heroico. Ela salva o reino e se liberta nesse processo.
Os jovens mitológicos sempre têm tarefas assombrosas para cumprir, com o agravante de não conhecerem a si mesmos ou aos entraves do caminho, as armas e recursos com que podem contar. Foi assim com Perseu, Teseu, Cinderela, Héracles, Thor, Harry, Branca de Neve, Arthur.
Os perigos enfrentados pelos adolescentes têm função e gravidade de rituais de passagem. Só se tornam adultos aqueles que cortam a cabeça do monstro, que mudam o curso do rio, que com as mãos nuas cavam um túnel na montanha, sobrevivem aos perigos da floresta encantada, vencem madrastas e dragões, arrancam a espada da pedra, enfrentam o vilarejo.
Alice tem lá suas tarefas, desincumbe-se delas aos trancos e barrancos, na maior parte do tempo não compreende o que está acontecendo e tudo se passa num ambiente estranho, com cores de mistério e ritmo de sonho.
A caracterização das personagens no filme me faz lembrar das figuras que minha imaginação infantil criava ao ler o livro, o que deve atestar a generalidade delas.
Visitei Alice, mais uma vez, e ela me recebeu para um chá.
Então inté, jacaré!
Marli Tolosa, psicóloga e pesquisadora