O sagrado tem conotação prática, não mística.
Sagrado é tudo que colocamos sob uma aura, segundo critérios absolutamente pessoais. Enquanto o seu sagrado o conduz à oração, o meu pode me levar à pintura, ou vice-versa. O sagrado faz parte da nossa construção individual.
Portanto, a leitura da Bíblia não é uma prática restrita às pessoas de fé. O legado das escrituras que foram alçadas à categoria de literatura cristã obedeceu a algum critério objetivo, que não sabemos exatamente qual.
Por ocasião das primeiras décadas da era cristã, Roma já padecia sob os efeitos das suas conquistas. Era um imenso território geográfico formado por anexos conquistados pela força da espada, abrigando as mais diversas formas de cultura e formação.
Desta forma, Roma não podia mais ajudar a todos. As pessoas estavam precisando se ajudar mutuamente.
Lembrem-se: Jesus havia morrido, condenado pelo Estado de Roma e o Novo Testamento estava em construção a partir da oralidade.
Mas uma nova cultura não nasce do zero. Nem uma nova religião. Ela sempre é construída a partir dos alicerces de uma religião anterior.
Aqui entra a figura de Paulo.
A linguagem de Jesus era campestre, própria do ambiente agrícola e pastoril da Palestina. Paulo era homem da cidade, usava uma linguagem mais teológica e abstrata.
Paulo nasceu cidadão romano, conforme retrata o texto bíblico. Para isso, segundo as leis romanas, seu pai já devia ser cidadão romano. Seus ancestrais devem ter servido como legionários do exército romano em suas inúmeras batalhas e adquirido assim a cidadania.
O jovem Saulo foi criado distante dos prazeres que reinavam na sua querida e próspera Tarso e, apoiado por seus pais, judeus zelosos, dedicava-se ao aprendizado do grego e do hebraico.
O fato que mais se destaca em sua vida de aprendizado foi o fato de ele se haver sentado aos pés de Gamaliel, o maior mestre do seu tempo entre os judeus (Atos 22.3).
Isso o tornou um intelectual muito acima da média, como dele diz BRUCE, F. F. em sua obra Paulo: o apóstolo da graça, sua vida, cartas e teologia:
“De todos os escritores do Novo Testamento, Paulo é o que gravou sua própria personalidade de modo inconfundível em seus escritos. […] não por ter composto suas cartas com um olho na propriedade estilística e no veredito de aprovação de um público mais amplo do que o que tinha primeiramente em vista, mas porque elas expressam, de modo tão espontâneo e por isso eloquente, seu pensamento e sua mensagem.“
A qualidade da escrita de Paulo era reconhecida pelos maiores helenistas de sua época. É autor de treze cartas que compõem o Novo Testamento sendo que metade delas tem autoria comprovada e metade se atribui a seguidores.
Paulo dedicou sua vida à propagação do cristianismo com furor de cristão novo.
Teve preço.
Foi preso e acusado de chefiar os cristãos e divulgar a seita. A pena de morte para cristãos comuns era a arena de leões, mas Paulo não era um cidadão comum.
Além de nobre e jurista, era um verdadeiro cidadão romano. Preso, sua sentença foi a mesma dos cristãos, mas a forma de execução, não. Recebeu a forma de execução reservada a militares e cidadãos romanos – a morte por decapitação. Era uma forma de reconhecimento da sua cidadania.
No ano 67 d.C., na Segunda Sessão do Tribunal, Paulo foi condenado à morte. Estava velho, cansado e não tinha a quem recorrer. Escreve então sua última carta, a Timóteo, afirmando de forma terrível e maravilhosa:
“Combati o bom combate, concluí a minha carreira, guardei a fé. De resto, me está reservada a coroa da justiça, que o SENHOR, justo juiz, me dará naquele dia.“
Foi decapitado por Roma, do lado de fora da cidade. Local hoje assinalado pela igreja San Paolo Fiori Le Mura.
O cristianismo nasceu na oralidade. Sua propagação deve seu sucesso à capacidade de estruturação, análise e propriedade do discurso de Paulo.
Cada uma de suas cartas obedece às regras de saudação, corpo e conclusão e são dotadas de reflexões e conteúdo primoroso.
O cristianismo nasceu na oralidade. Mas foi a boa literatura que garantiu-lhe a vida eterna.
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