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Um passeio

Então, minha mãe me vestiu para sair. Muito arrumadinha, lá estava eu num vestido de veludo marrom de gola xale de renda branca, luvinhas e equilibrando a cabeça sob um laço improvável, segurando as madeixas rebeldes.

Rumamos, mamãe e eu para uma aventura no meio da semana. Eu não sabia nada do que ia acontecer porque não havia qualquer possibilidade de questionar as decisões maternas.

Descemos do ônibus e caminhamos um pouco de mãos dadas até chegarmos a um prédio amplo cheio de cartazes coloridos.
Dirigimo-nos a um guichê onde ela me instalou diante de si, encostada ao seu joelho, meu rosto querendo esbarrar na parede à minha frente. (Esse era o truque para que eu não saísse de junto dela quando precisávamos soltar as mãos)

Resolutamente atravessamos o saguão de pé direito altíssimo, entramos numa sala imensa cheia de cadeiras cor de vinho e ela procurou um lugar para nós duas onde não houvesse alguém que impedisse a minha visão.

Ficamos ali sentadas e eu já achando tudo bonitíssimo, as luzes, os chapéus de mamães e filhinhas, o rumor de tantas vozes, a cortina grená, a música enchendo a sala.

Ao meu lado sentou-se uma família inteira, pai, mãe dois meninos e duas meninas. Quando um deles pediu ao pai para passar o saquinho de doces, um apertão no braço impediu-me de olhar.
Lição número um para conviver com estranhos. 

Foi então que as luzes se apagaram, parte delas de início, todas elas a seguir e a cortina se abriu. A tela branca encheu-se de imediato de imagens em branco e preto enquanto um instrumento de sopro secundava figuras descritas por uma voz masculina muito elegante.

Embora a televisão tenha diminuído a magia desse episódio inaugural, penso que para meus filhos a primeira sessão de cinema tenha oferecido deslumbramento semelhante.

Quero acreditar nisso porque, embora fosse muito pequena na ocasião, gravei para sempre o medinho de estar num lugar desconhecido e escuro, o cheiro daquele salão, os ruídos todos e o silêncio ao eclipsar das luzes.
Principalmente as imagens enormes e o som vibrando no ar. Uma história contada com som e fúria.

E claro, o orgulho da minha mãe por me dar um presente tão precioso.

Marli Tolosa, psicóloga e pesquisadora

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