Eu tive um sonho. Lindo. Fui dormir às 19h30 e acordei à meia-noite, encantada. Sentei, escrevi meu sonho. Foi lindo. Quase nunca tenho pesadelos, sonhos horríveis, de acordar chorando. Mas são raros também sonhos realmente felizes. Meus sonhos, no mais das vezes, são. Sonho, acordo, a vida segue.
Mas neste domingo, tive um sonho lindo. Redondinho. Perfeito. Final feliz. Olha. Meu inconsciente, eu pensei, quer me dar um abracinho, cheirar meu cabelo, beijar minhas pálpebras, soprar meu rosto, me dizer que vai tudo ficar bem, todas essas cousas que, quem nos ama, não tarda em fazer. Obrigada, inconsciente. Você foi uma fofura.
Sonho anotado, xixi feito, caminha do cãozinho afofada, voltei para a cama e antes de cair na segunda parte do meu sono, lembrei duma cousa que minha mãe me ensinou há tantos anos e que eu vivo para esquecer: rejeição prende, amor liberta. É tão simples, tão fato, tão óbvio. Mas eu escolho não saber.
Meus olhos pesaram e, quase já não aqui, eu me dei conta de que a fofura do meu cerebrinho reptiliano pode, muito bem, ser contestada. Ele quer manter você aqui, mesmo nos horários em que escolho não fazer isso.
Às vezes volto ao que D. um dia chamou de meu “vício em trabalhos ruins”. Agora que tenho as aulas, posso sustentar meu vício, ou melhor, permitir que o sustento que ele me dá seja um suplemento de renda, não a razão principal da manutenção da casa.
Mais ou menos como o que sinto por D.
O que sinto por D. é um alegria, não uma angústia, um pontinho brilhante que me ajuda a atravessar os dias. Jamais terei, jamais poderá ocupar o palco principal do meu circo, mas ok, o que sinto está num dos picadeiros laterais, ao lado do picadeiro de Madame Janice – presente, passado e futuro, do cara que encosta o calcanhar na orelha e no sujeito que faz aquele truque da ervilha e os copinhos. Ia falar sobre o circo de pulgas, mas D. é jovem demais para conhecer essa história.
Enfim, mandei material pro Paulo, recebi o material do Paulo, arrumei tudo num pacote palatável e enviei meu trabalho-vício, esperando ser paga algum dia ainda desta era geológica. Tomei um banho de estrela de cinema, se alguma estrela de cinema um dia tivesse um banheiro tão pobrinho quanto o meu. Coloquei um pijama limpo (D. sabe a verdade sobre mim, uso pijamas o tempo todo), e desci as escadas.
Estava com fome, estou sempre com fome.
Fiz uma cumbuca do mais perfeito, mais suculento, mais maravilhoso macarrão ao sugo de que se tem notícia. E abri uma garrafa de vinho. Sim, eram dez da manhã e nós não vamos falar sobre isso.
Comi minha cumbuca de macarrão. Bebi meu vinho.
Ah, e me permiti pensar em D. por aproximadamente doze segundos.
D. rira se me visse em meu jantar da vitória às dez da manhã. Mas, acho, comeria um pouco do meu macarrão e beberia meu vinho tinto gelado (no Brasil, vinho tinto se serve gelado e quem não concordar com isso que emigre para a Rússia e nos leve junto).
D. me disse para não abusar do vinho porque eu tinha aula para dar para a Marcella às quatro da tarde.
D. até lavou a louça porque, ei, a fantasia é minha, eu decido quem lava a louça.
Parei, enfim, de pensar em D., acabei meu macarrão, lavei minha própria louça e me deitei para ver um cadinho dum filme espanhol. Às três e meia subi, abri o documento da aula da Marcella e a da Diana, que viria depois. Dei as aulas das meninas, desliguei computador, fui pra cama dia ainda e dormi por doze horas.
Quando acordei de madrugadinha para ler os textos da aula do Antonho, que começava às sete da manhã, respondi os recados de D. sobre séries. Depois dei aula o dia todo e a vida seguiu seu trem-trem.
Não me lembro porque comecei a lhe contar toda essa história.
Y los deseos me vieron nacer Los árboles me vieron crecer El océano me vio navegar Las estrellas me vieron cruzar Las estrellas me vieron llegar Las estrellas me vieron perder Las estrellas me vieron ganar Las estrellas me vieron correr Las estrellas me vieron volar Las estrellas me vieron perder Las estrellas me vieron ganar
Lido com a dor imensa trazida pela percepção tardia da perda como lido com qualquer dor: dormindo. Há quem coma, lute, faça esportes, chore ou beba. Eu durmo. Dormi você o domingo todo. Aproveitei e dormi a perda do marido da amiga.
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Filme excelente, de tão ruim, passou pelo tempo/espaço e eu não vi; o vilão, de suástica no peito, é o Bobby Goren, o Toby é o advogado dele, aquele bonitinho segurança no velho seriado de cassinos é o mocinho e o onipresente Bruciulins é o mocinho-auxiliar. A única tristeza do filme é pensar que, se fosse feito hoje, talvez o Bobby Goren fosse o mocinho. Pessoal anda apegado à suástica.
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Amiga perdeu marido na mais dolorosa das épocas e, de longe, Marli e eu choramos abraçadas, porque é só isso mesmo que é possível.
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Continua o tempo agradável. Calor ainda, moro num país tropical, esquecido por Deus e horrendo por natureza – mas a temperatura se aproxima da civilização, pelo que agradeço.
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Entro dez vezes por dia na casa que desejo. Ando por cada cômodo por meio das fotos, sei dos detalhes, sei dos cantos do minúsculo jardim, planejo onde comprar lenha para o fogão, sei das redes que subirão os muros para os gatos, sonho com prateleiras e poltrona de escritório. No primeiro dia, com o google maps, aprendi a ir e vir da padaria e da sorveteria (minhas prioridades, como você sabe, são irretocáveis.) Não vou dizer que por uns dez segundos, não pensei que você caberia ali, seus livros, cafeteiras e biblioteca, mas parei imediatamente com isso. Me concentro nos meus livros, nas minhas cafeteiras e na minha biblioteca.
Colocarei 675 quilômetros em linha reta entre nós. Pode ser que, lá, eu esteja a salvo.
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Frango xadrez: não é meu lance, realmente.
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Água gelada: meu lance, totalmente.
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Acabou o bolo de chocolate. Vida longa ao bolo de chocolate.
De dois dias para cá, o tempo melhorou. Dormir coberta por uma manta é uma delícia. O calor histérico das últimas semana me deu erupções no colo e pescoço. Eu parecia uma velha nelsonrodrigueana. Estou um pouco melhor.
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Lutando com um conto novo. Ele está e não está, é e não é, ele existe, mas nem tanto assim. Passei a tarde toda presa na rede e ele e as palavras dele e a sombra dele se enredaram por entre meus tornozelos, como um cão aflito.
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Acho que nunca mais vou falar com você. Não de verdade. Não além do hahah, obrigada por mandar para mim o mesmo meme impessoal e cretino que você manda para a sua timeline inteira, obrigada, eu ainda não estava me sentido humilhada o suficiente.
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Ás vezes, quando inspiro o ar, ele vem para dentro de mim como aquela respiração sincopada que damos aos soluços, sabe, no meio do choro. É isso. Choro por aí sem lágrimas, como uma boa soldadinha. Minha mãe certa vez elogiou minha imensa capacidade de recuperação e eu acreditei nisso.
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Como outros homens minúsculos e covardes, você a jogou para cima de mim. Mas eu não os amei. Nunca esperei coisa alguma deles e, se não pudemos ser amigos, ai, dane-se. Você eu amei imensamente. Foi mais um soco na boca sem necessidade. Eu já estava tão frágil.
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Minha pele vai parando de doer com a água do banho, o lençol, a camiseta cinzenta que adoro.
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Demoro para acusar cada golpe que recebo. Demoro para sentir. Demoro para entender. O golpe deferido sobre mim por um grupo de pessoas, todo um grupo de pessoas que realmente julguei amigas, me atingiu só essa semana, acho que mais de um anos depois do fato. Meu luto por cada um começou ontem. Meu luto por mim mesma deve demorar, ainda, algum tempo.
A sua perda se tornou mais real com a perda de todas essas pessoas me alcançando. Primeiro porque você está ali. E você escolheu ficar ali. Depois porque meus erros de julgamento me dilaceram. Eu me sinto tão tola.
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Escrevi um montão de coisas amargas e tristes, mas apaguei posts e posts e posts. Porque sou uma boa pessoa? Não. Por que nada faz sentido ou adianta ou fará diferença? Sim.
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O cheiro do bolo de chocolate faz meus joelhos tremerem e, como acabo de dizer, perfuma a casa, acalma o coração. Não traz de volta quem nunca esteve, mas nada trará.