Pular para o conteúdo

No grito

A travessia do deserto levou quarenta anos. No fim desse tempo, a maioria dos homens adultos que saíra do Egito já tinha morrido.

Restavam Moisés, Josué e Calebe.

Moisés caiu em desgraça com Deus por ter duvidado da ordem de tocar uma pedra com o cajado e dali verter água. Veja bem. Um homem que tinha abdicado de uma vida de rei, ou melhor, de faraó, para guiar aquele povo por um deserto, aguentando as pulgas de mil camelos, perder a confiança do Todo Poderoso por causa de uma bobagem dessas.

Mas é de rancor que se alimenta a divindade e Deus fazia questão. Sentenciou:

– Na terra prometida você chega, mas não entra.

Cumprindo o determinado, Moisés morreu nas campinas de Moabe, onde o povo ficou acampado por um ano, às margens do rio Jordão.

Mas por que esse povo passou quarenta anos fugindo da escravidão no Egito, enfrentando deserto, fome e desconforto e quando chega nas margens do Jordão para e monta acampamento por um ano inteiro?

Por um motivo muito simples. A terra prometida tinha dono. E quem fez a promessa não morava nela. O nome disso é invasão, mas vamos levar a sério o que escreveu Moisés em Deuteronômio e chamar de conquista.

O sucessor de Moisés era Josué. Um rapaz esforçado, mas que não era aquela Coca-Cola toda. Para se ter uma ideia, com Moisés, Deus falava cara a cara. Com Josué, só por meio dos sacerdotes e com hora marcada. E o pessoal, a gente sabe, costuma maldar. Josué precisava de um feito heroico para fazer seu nome perante as tribos.

Da outra margem do rio Jordão ficava a cidade de Jericó. Uma cidade totalmente cercada por muros. Muros poderosos, com gente morando dentro, inclusive. Josué doido para conquistar, vamos chamar assim, a metrópole.

Mandou dois espias. Os caras atravessaram o rio a nado, parece que ponte ainda não tinha sido inventada, e bateram na porta da casa de uma puta. Juro por Deus. Uma puta chamada Raabe. Mas como a casa de Raabe era bem frequentada, o rei de Jericó ficou sabendo que Raabe estava recebendo dois espias estrangeiros. E como um acampamento de dois milhões de pessoas do outro lado da margem do rio, pelo tempo de um ano, não é coisa que passa despercebida, o rei de Jericó sabia exatamente o que os espias tinham vindo fazer ali.

Mandou dois guardas numa batida em casa de Raabe. A moça, porém, já de olho no futuro, escondeu os dois espias e enganou os guardas:

– Ih, foram embora. Hebreus? Não sei se eram pois não deu tempo nem deles tirarem a roupa. E vocês, tão com fome? Não querem comer uma coisinha?

Modos que os guardas não descobriram coisa alguma sobre os espias e foram embora. Raabe, que de boba nada tinha, fez um acordo com os moços:

– Não conto que vocês estiveram aqui e, se vocês conseguirem invad… ou, melhor, conquistar a cidade, livram a minha cara e da minha família to-di-nha.

Assim foi feito. Como Raabe morava na muralha, ela amarrou uma fita vermelha na janela e quem da família dela estivesse em casa no dia da invasão, seria poupado.

Os vigias voltaram, contaram para Josué sobre tudo que tinham observado e começaram os preparativos para a travessia do rio Jordão. Era gente que não acabava mais e ponte, como já mencionamos, não tinha.

Tiveram de se valer do mesmo expediente da travessia do mar Vermelho, ideia que não foi recebida com grande entusiasmo, primeiro porque já havia sido empregada por Moisés de forma muito mais dramática, porque foi no mar, não rio. Segundo, porque a travessia do Mar Vermelho foi feita com o exército do Faraó no encalço e, terceiro, tinha perdido o ineditismo. O pessoal resmungava:

– Ah, pronto. Lá vamos nós empurrar carroça em lamaçal de novo!

Foi um perrengue, mas conseguiram atravessar.

Já na outra margem, Josué conseguiu um encaixe de hora com Deus, por força de uma pistolagem com o sacerdote, e já queria marcar a peleja que faria dele um guerreiro temido. Deus disse:

– Tu tem coisa mais urgente pra fazer.

– O que, Senhor?

– Uma faca.

– Uma faca? Pra quê?

– Pra podar a bilola desse povo todo que nasceu no deserto e até agora não foi circuncidado.

– Eu vou ter que podar a rola de seiscentos mil machos??

– É claro que não, Josué. Você pode ter um ajudante.

Josué nem piou pois ele bem sabia a bicha vingativa que Deus era. Se Moisés, que era Moisés, caiu em desgraça por besteira, imagina ele.

Pois bem, o macharedo todo circuncidado, Josué começa a elaborar um plano para a invasão que consistia no seguinte:

Sete sacerdotes levavam sete trombetas de chifre de carneiro. Na frente dos sacerdotes, a arca da Aliança (aquela do Indiana Jones e Os Caçadores da Arca Perdida) carregada por uma porção de sacerdote, e atrás dos trombeteiros, os soldados.

Uma vez por dia, os sacerdotes tocavam as trombetas e o povo todo marchava dando uma volta em torno da cidade, em silêncio. Repetiram por seis dias. No sétimo dia, assim que terminaram de marchar, gritaram todos a plenos pulmões:

– Vai cair! Vai cair! Vai cair!

E caiu.

Putaquepariu que plano paia. Mas, dizem, funcionou. E funcionou tão bem que toda a muralha ruiu, MENOS a parte que era a casa de Raabe, que se salvou. Salvaram-se a puta, os pais da puta e os filhos da puta todos.

O povo hebreu invadiu a cidade e cumpriu, com muita alegria, as sempre sábias e bondosas instruções do Todo Poderoso: matar todos. Homens, mulheres, crianças e animais. Só pouparam os objetos de ouro, prata e bronze, que levaram consigo.

Josué lançou uma maldição sobre quem reconstruísse a cidade. Acho que o pessoal não levou muito a sério pois Jericó não só foi reconstruída como existe até hoje, às margens do Jordão.

Mas por um tempo, Josué gozou de uma certa respeitabilidade.

Se bem que, na taberna, depois de uns tragos, todos ouvindo calados os feitos de Josué, tinha sempre um gaiato que rompia o silêncio e perguntava:

– No grito?

– No grito.

– Ahh, num fode!

2 comentários em “No grito”

  1. Own que lindeza de narrativa! Me lembrou de ter chorado de rir com o storytelling do Hermanoteu sobre as peripécias de Moisés com a turma toda correndo pela vida enquanto o mar não estava para peixe… 🤭 Genial! 🙃

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *