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Diário de um mundo que acabou: Cartago, Coltrane e canetinhas

Fico ouvindo Coltrane e me perguntado se você ouve também ouve o velho. Isso é o tipo da pergunta idiota. Devia sair uma personagem de detrás da cortina e me acertar com um martelo bem grandão daqueles do Pica-Pau.

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Canetinha boa é canetinha de rico. Eu ligo pra Zuzi Márcia e pergunto “posso comprar?” e ela diz “pode”. Aí eu confirmo “posso mesmo, Zuzi?” e ela diz “pode, porra”. Canetinha de rico é caro demais. Mas você pinta e fica aquela coisa linda, uniforme, a canetinha parece que preenche sozinha os buraquinhos brancos (a nao ser quando a gente deixa os branquinhos de propósito pra fazer a linha “artista-perturbado-desleixado”). Enfim, enquanto a Zuzi deixar, compro mesmo.

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Grifei um trecho do Verissimo novo em amarelo e fotografei pra Nepomuceno. Ela viu a foto, se deu conta de que tinha grifado o mesmo trecho em amarelo e pensou “como que meu livro foi parar na casa da Fal?”.

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Creio na força dos apelidos. Na particularidade deles. Que eles ajudam a criar laços que desejamos estabelecer. Em sua maioria, traduzem um estado – de humor, de amor, de época. São únicos, são delicados. Quando me tomam um apelido que cuidadosamente escolhi (no mais das vezes, amorosamente, porque não vejo outro motivo para apelidar que não seja o amor), abandono o apelido e, dependendo da situação, também os envolvidos, o apelidado e o ladrão. Nem olho para trás.

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Pensando em mudar de casa e de cidade, pensando em ir embora, pensando em sair daqui, pensando, pensando. Odeio São Paulo. O que me consola é o que diz minha mãe: “Quando a gente detesta alguém, quase certeza que ela também nos detesta”.

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Entendo que linguagem comercial é isso mesmo, comercial e que não cabem grandes declarações de amor, amizade e tal, mas jamais vou acostumar com a secura que beira a falta de educação. Credo. Se é comigo, cancelo.

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Cartago me escapa. Ao longe, sozinha, tremula em meio à névoa, ao granulado do tempo, ao sépia que toma minhas retinas. Cartago escapa em meio a respostas evasivas, em meio às pegadas leves sobre a folha de arroz. Cartago acena e se esconde, ela me quer, mas não muito, ela me sabe, mas nem tanto assim. Cartago some, some, some, como se fosse possível navegar em meio à areia, na direção do centro da África e mais além, na direção dum mundo que não há, na direção do nada absoluto, do que sequer se nomeia. Cartago esquece as chaves, a carteirinha do plano, meu nome, a cor dos meus olhos e o tanto que a amei, o tanto que entoei seu nome, louvei seus predicados, busquei alcançá-la por sortilégios e orações e febres. Cartago me guarda nalgum canto, nisso preciso acreditar, ela me guarda, acho, no eu te amo apressado que ele deixou na minha caixa postal tantos anos atrás (e que guardo, guardo, guardo), nalguma coisa certa que eu tenha feito ou sido, no meio do tanto de errado e inadequado e de constrangedor que sou. Cartago quase desaparece no horizonte e depois some e depois não dá notícias e depois me ignora cruelmente e depois manda um oi tonto no gerenciador e depois reaparece, como se fosse possível viver sem ela, como se fosse possível viver com ela.

4 comentários em “Diário de um mundo que acabou: Cartago, Coltrane e canetinhas”

  1. Cartago me escapa. O riso me escapa. A esperança me escapa. O futuro me escapa. O amor me escapa. Ou eu que escorrego entre os dedos da mão da vida. Me seguro nas palavras. Nas minhas. Nas suas. As suas são mais sólidas, maiores, mais firmes. Me sustentam. Obrigada.

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