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Chovendo no molhado

Na nossa carreira evolutiva, quando nos instalamos sobre dois pés, divisamos um horizonte mais amplo.

Nossas mãos ficaram livres para carregar coisas, fazer coisas, cultivar coisas.

Nossa boca deixou de carregar coisas, então nossos grunhidos se desenvolveram, passamos a articular p a l a v r a s. Nós nos humanizamos.

Tudo o que os humanos fazem que não é fisiológico, é cultura.

O galho seco que foi apanhado para alcançar a fruta mais alta, atingir a caça mais distante ou golpear o inimigo desavisado.

A pedra grande e redonda, lançada, para afugentar o predador, a pedra longa e áspera usada para cortar a mandioca e esfolar a caça e o inimigo desavisado.

As roupas para proteger da chuva, do sol, da urtiga, do espinheiro, do formigueiro, do frio, dos parasitas, dos predadores e dos inimigos desavisados.

A ânfora para carregar e armazenar água, óleo, vinho e o inimigo desavisado. 

O lápis, o tribunal, o hospital, a banca de jornal, a praça, o preço, o prego, a prega da saia, a placa de pare, o microscópio, o telescópio, o estetoscópio.

Tudo isso é cultura.

A pintura, a escultura, a música, a dança, o teatro, a fotografia, o cinema, as cores nas roupas, os colares, os piercings, os adereços mis, são facetas da cultura que visam compreender e apreender o mundo e seus fenômenos, seus habitantes e, principalmente, comunicar. Até para os inimigos desavisados.

Quando um grupo fica isolado num só lugar por determinado tempo, os recursos à volta, os instrumentos e as técnicas já constantes do seu arsenal cultural mantêm-se os mesmos, tornando essa cultura empedernida, cristalizada, imutável e chatíssima.

A influência que diferentes grupos exercem uns sobre os outros transforma técnicas, diversifica utensílios, ensina truques, aumenta o instrumental e a compreensão, multiplica possibilidades e avanços.

A mesclagem mostra o ponto de vista do outro, faz aceitar as diferenças, nos faz originais e, principalmente, deixamos de ser o inimigo desavisado.

Aculturação não é só uma necessidade, é uma obrigação.

Como dizem Ivan Lins e Víctor Martins: Somos todos iguais nesta noite.

Somos todos iguais.

Marli Tolosa, psicóloga e pesquisadora

6 comentários em “Chovendo no molhado”

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