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Angústia

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por Marli Tolosa

Um soluço na garganta

Na verdade, não sabíamos muitos detalhes da montagem. A peça era baseada em Medeia, de Eurípedes, e conhecíamos o velho, claro, alunos do Clássico dos anos 1950 que éramos. Também conhecíamos o filme de Pasolini e a ópera de Luigi Cherubini (com a soberba Callas). Mas num tempo pré-internet, os pormenores do texto e das atuações povoavam nossa imaginação. Recém-casados, pais frescos, profissionais com menos de dez anos de prática, quase todos, tínhamos também alguma militância política em nossos passados. Acontece que, em meados dos anos 1970, éramos para o bem e para o mal, membros da classe média que enriquecia no país do milagre econômico. A ditadura militar estava longe do fim e mesmo os marcados, espancados e torturados dentre nós haviam entregado os pontos. Ou queríamos que acreditassem que sim. Não chamar a atenção era norma e não fazer marola, depois de um tempo, se torna um estilo de vida.

Quando Eurípedes escreveu Medeia, tinha a mesma idade que nossos pais tinham no começo da década de 1970. E como nós, ele vivia num lugar e numa época onde nem tudo podia ser dito. Onde as palavras tinham de ser medidas e cuidadas.

Em A gota d´água, Chico Buarque e Paulo Pontes protestavam contra o sistema, como Eurípedes em Medeia e sim, isso nos preocupava. Eu conhecia a mão do Estado, talvez, melhor do que meus amigos, certamente melhor do que meu marido. O Brasil dos anos 1970 era um país de reuniões clandestinas, de receitas no lugar de reportagens nos jornais (jornais de papel, vejam vocês), onde amigos ainda sumiam – pelas mãos da polícia ou no mundo, em navios e ônibus pouco fiscalizados, depois de dormir algumas noites no meu sofá de mãe insuspeita.

Naquela noite nós nos reunimos na minha casa antes da peça, como sempre fazíamos, bebendo caipirinha de vodca e comendo canapés. Mas não houve conversa e nem risadas. Íamos ao teatro, programa sagrado de toda semana, mas estávamos nervosos. Nem as peças do Plínio Marcos foram precedidas de tanta tensão. Grupo formado, todo mundo vestidinho para o teatro – naquele tempo ainda nos vestíamos para o teatro – saímos em dois carros, andando tensos pelo meu bairro, que contava com um quartel da polícia do exército, cercado de guardas empunhando metralhadoras.

Estacionamos o carro perto do teatro e andando até o teatro, eu sabia, ao menos em parte, o que me aguardava: Bibi Ferreira estaria no palco.

Ela era a atriz que eu mais amava na vida. Com quem aprendi a gostar de teatro.

Bibi em foto de promoção da peça A Gota D’água

Bibi

Eu tinha quinze anos quando a vi em cena pela primeira vez. My fair lady. A música que ela cantava na peça, Eu dançaria Assim (I could have danced all night) era ainda a música que eu cantava andando na rua, comprando a roupa de meu casamento, ninando meus filhos, durante a espera de muitos interrogatórios em salas imundas – com palavras, aos murmúrios ou só dentro da minha cabeça, a voz de Bibi estivera comigo todos os dias, desde sempre. Naquela noite, não apenas a voz, mas toda a Bibi Ferreira voltaria para mim, e eu tinha um soluço na garganta.

Bibi Ferreira em foto promocional da peça A Gota D’água

Cortina

Quando a cortina subiu suspenderam-se também as respirações. O silêncio na plateia fazia um corte solene e denso no tempo. Iluminado, o cenário no palco era uma moldura. Na minha memória, ele não eclipsava a cena, servindo de enquadre para o meu olhar. As personagens se movimentavam. Ouvíamos suas falas, as músicas. Víamos seus gestos e suas expressões e emoções nos guiavam. Assistíamos à dor de Joana, à covardia de Jasão, à arrogância de Creonte e à futilidade de Gláucia. Nós nos comovemos com a solidariedade dos vizinhos do conjunto habitacional.

Percebemos a violência no banimento de Joana que, sem bens, sem família ou trabalho, não tinha para onde carregar os filhos. Era assim que saíam do Brasil os exilados políticos. Meus amigos, pessoas que frequentavam minha casa. Homens e mulheres com crianças pelas mãos. Fugiam como era possível, sem qualquer garantia. Sair do seu lugar é tornar-se um sem-teto.

Bibi Ferreira em foto de divulgação da peça A Gota D’água

Peito

Jasão cede à imposição de Creonte, que deseja ver longe a família do futuro genro. Joana reage ao servilismo do marido. Bibi Ferreira, nesse instante, empresta à Joana todo sofrimento, todo o ultraje toda a indignação que eram nossos também. Com a dor que sentíamos fora do nosso peito, reconhecemos ali um dos maiores momentos da dramaturgia de nosso tempo. Era nossa aquela ira, era nossa a voz projetada de Bibi

Joana narra sua vida ao lado de Jasão. Fazendo dele seu país, sua causa, abriu mão de seus próprios recursos criativos e inventou para ele qualidades, um talento, uma biografia. A fúria dela, a fúria dela. Esse discurso é semelhante ao de Medeia na peça original – uma fala que foi considera pela professora Eva Cantarella, em 2016, como protofeminismo.

É espantoso como as mulheres repetem – e repetem, e repetem – os mesmos gestos, entregam a alma e tudo o que são de forma a se despojarem de seus atributos por seu objeto de amor – ano após ano, século após século, civilização após civilização.

Bibi Ferreira em foto de divulgação da peça A Gota D’água

Jasão

Jasão responde que agora tem um samba fazendo sucesso, que pode aspirar por melhores dias e que escolheu um novo destino para si.

Ele faz o que é necessário para sobreviver. Sob circunstâncias terríveis, num lugar sem lei, com futuro incerto ou nenhum, Jasão se agarra à vida. Ele não monta um consultório em um bairro chique, ele não volta à faculdade, ele não esconde as cicatrizes das porradas e dos choques recebidos nas sessões de tortura sob elaboradas camadas de base. Essa não é a história dele. Ele se torna a voz de Creonte. Ele se torna a voz do inimigo.

A ira

A ira é cumulativa segundo Camus (e não apenas ele): as grandes e pequenas injúrias vão se sedimentando até que certo dia, por uma bagatela, uma gota d’água, o vaso transborda.

Assistimos à movimentação dos atores, vozes, gestos, intenções. Isso é algo que a censura – nenhuma censura – jamais dará conta, é impossível enquadrar tons, sobrancelhas erguidas, suspiros, engolidas em seco. Era ali, não nas canções de Chico, não nas palavras de Pontes, era ali, nos detalhes, que se declarava o repúdio de todos nós ao que acontecia fora do palco. As vidas ceifadas, as liberdades perdidas, os gritos dos desesperados que imploravam para falar com a família antes do fim inevitável, os livros queimados, os amigos espancados que buscávamos em hospitais afastados, as mulheres e maridos e filhos e filhas que jamais encontrariam um corpo para honrar e enterrar, as muitas coisas não ditas. Os companheiros que batiam em minha porta no meio da noite, carregando outros companheiros que precisavam de dois ou três dias de esconderijo antes de dizer adeus ao seu país.

Corinto

Com sua atuação impressionante, Roberto Bomfim, Bibi Ferreira, os moradores do conjunto habitacional Vila do Sol – a Corinto ao nosso alcance – nos permitiam uma catarse que esperávamos há muito, uma catarse se se deu não no que foi cantado e declamado, mas no que não foi dito, não foi verbalizado.

Basta um dia

Creonte dá um dia a Medeia. Um dia, só um. O que todos nós ali, desejávamos: um dia. Um respiro, um alívio, um segundo com amigos desaparecidos, um último beijo no filho, um momento de sol na pele, uma última chance.

A falta de um dia, de perspectiva, de esperança e de espaço, faz transbordar o pote (e pensando um pouco com você neste momento: não é incrível que depois de tanta leitura ainda não tenhamos entendido o básico? Potes cheios transbordam, é questão de esperar). Eurípedes fala disso. Chico e Pontes, também. E Bibi, e Bomfim e cada um um de nós ali, meus amigos assustados, meu marido mezzo alienado, minhas cicatrizes ainda vivas.

Nós

Entendíamos o que motivava cada personagem, cada renúncia, cada traição, cada gesto tão cruel, tão fraco, tão  humano. Gritamos com cada personagem, sentimos nossa esperança se esvair, perdemos a cabeça, matamos nossos bebês, paramos de sonhar.

Deixamos o teatro, todos nós, juntos e sozinhos, perdidos em pensamentos assustadores demais para serem verbalizados.

Ao vermos Joana vivendo o mesmo drama que Medeia, nós nos perguntamos se não estaríamos fazendo o jogo do poder. Não éramos o nosso próprio Jasão, ajeitados à boa maré do milagre brasileiro, casas em estilo colonial, carros na garagem e crianças nos melhores colégios particulares?

Fomos a primeira geração dos filhos de operários a ingressar na faculdade, ombro a ombro com jovens de classe alta. Conseguimos bons empregos, satisfação profissional e projeção social. Cometemos o imenso crime de sobreviver, e bem, quando muitos de nós ficaram pelo caminho.

Nossa consciência era clara, nosso desejo, obscuro.

Marli Tolosa é obstetriz, professora de mitologia e psicóloga. Nada como um martelo sem cabo. Gosta de teatro, ópera e detetives ingleses metidos a sabichões.

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