Nelson Vitiello nasceu em 1940. Rua James Holland, Barra Funda, São Paulo.
Pai pedreiro e especialista em mamíferos quadrúpedes não ruminantes perissodáctilos de alto desempenho (era apostador em corrida de cavalos). Mãe espanhola, não por acaso a melhor bandeira espanhola saía da frigideira da velha. Costumava chamar o Nelsão de “Bonequinho Cor-de-Rosa”, mas isso só está sendo revelado porque ele está morto.
Menino quieto, fechado, poucos amigos, pouca rua. Mãos lindas, senso de humor cruel e necessidade camicase de ter sempre razão. Campeão de salto ornamental. Campeão de remo com patrão, várias medalhas. Doutorado na USP. Discípulo de Walden, adorava andar, simplesmente.
Na décima terceira vez em que foi preso enquanto cursava Medicina na PUC de Sorocaba, estava nu, trepado num poste, tentando roubar a placa da delegacia. Seu apelido na época era “Mizinfa”. Hesitou entre a Neurologia, a Patologia e a Obstetrícia.
Ninguém podia tocar no umbigo dele, jamais, sob nenhuma circunstância.
Viajou pela Europa durante meses comendo duma mesma peça de queijo, um monumento de metro e meio que exalava um cheiro inacreditável, e quase foi expulso do ônibus da excursão pelos colegas.
Casou com a Marli, que fazia partos na mesma maternidade que ele e que também nasceu na rua James Holland. Dos três bebês do casal, dois sobreviveram.
Ateu. Tocava sanfona e gostava de cocada. Na infância dos filhos, assombrava os pequenos aos berros de “Menineia e Garoteia, com o papai não se bobeia”. Uma irmã, música, excelente cozinheira. Teve um irmão gêmeo que nasceu morto e, por toda sua vida, Nelson se perguntou se quem tinha sobrevivido era mesmo ele.
A careca nunca o incomodou. Ensinava astronomia aos filhos e aos garotos da vizinhança usando lanternas e laranjas. Torcedor de mentirinha do São Bento de Sorocaba. Na real, detestava futebol. Adorava poesia, declamava muito bem. Adorava museus, dava espetáculo explicando obras de arte (e quando não sabia do que tratavam, inventava). Adorava cães e cavalos. Não raro, usava uma meia de cada cor.
Poucos amigos de verdade, muita evolução para a arquibancada. Seu jargão mais conhecido: “Paga um café!”. Considerava espúria qualquer manteiga que não viesse dentro duma lata. Era querido por garçons, faxineiros e seguranças, porque perguntava o nome das pessoas, interessava-se por suas vidas, não se esquecia das histórias e nomes dos filhos delas. Chamava seu carro de “viatura”. Ria das próprias piadas. E de si mesmo, sempre.
Ao fazer partos, permitia que a paciente escolhesse entre bolero ou samba-canção, e daí cantava a plenos pulmões, feliz com a audiência que não podia ir a lugar algum. Fazia ovos no inferno pros filhos que chegavam meio bêbados às três da manhã. Minister, depois Hollywood, coisa de três maços por dia. Caipirinha de vodca e vinho branco (“Tenho a constituição delicada demais para o tinto”, dizia, e os filhos respondiam, “Deus tá vendo”). Roubava pão do vizinho, mas depois ia à padaria, devolvia o pão, o vizinho se acabava de rir e convidava o Nelsão para um novo café da manhã. Amava Lisboa, era feliz pacas por lá. Ficção científica acima de todas as outras formas de literatura, com a exceção, talvez, de Asterix. Considerava uma perna de cabrito bem feita a verdadeira manifestação do Divino e, nesse momento, seu ateísmo fraquejava.
O filho, Pedro, foi seu maior motivo de orgulho. Dormia três ou quatro horas por noite, porque nas madrugadas em que não estava fazendo partos, escrevia artigos – no verão, peladão, no inverno usando pijama cirúrgico roubado do hospital Albert Einstein. Ah, no inverno também usava uma touquinha verde de tricô que todo ano os filhos planejavam queimar, mas temiam as consequências.
Levava as crianças para o colégio ouvindo a rádio Jovem Pan e parava na padaria para tomar café da manhã: iogurte batido e queijo quente. Morava em seu escritório, a cama dele ficava dentro de uma biblioteca. Fascinado por computadores desde o comecinho dos anos 1980. Dezenas de livros publicados, centenas de artigos. Um cruzado da educação sexual.
Dizia aos filhos “medicina é sacerdócio” em tom de piada, mas os meninos sabiam que ele falava seríssimo. O maior gineco-obstetra de sua geração. Passou pelos melhores hospitais de São Paulo.
Em 1986, criou a SBRASH, a Sociedade Brasileira de Sexualidade Humana, e passou anos fazendo lista de sócios, lambendo envelopes, coordenando cursos, montando congressos, educando, promovendo diálogo e reflexão.
Nelson Vitiello mudou o estudo da Sexualidade Humana no Brasil para todo o sempre. Vivia para e com seu trabalho, no consultório, em salas de cirurgia e de aula com a mesma paixão, a mesma abnegação, a mesma entrega. Formou muitas e muitas gerações de profissionais da Saúde, e mais de década e meia depois de sua morte, seus filhos ainda ouvem elogios a ele aonde quer que vão. Durante seu velório houve um acirrado debate sobre onde se fazia a melhor pizza de São Paulo. Nelson se orgulharia disso.
Seu legado sustenta e guia médicos, educadores e sexólogos de dentro e de fora do Brasil, saibam eles disso ou não.
Seu plano de morrer assassinado por um marido ciumento aos noventa e oito anos não se concretizou, mas foi por pouco. Mentira. Ele morreu cedo demais. Com projetos demais por terminar. Um neto recém-nascido. Devastando o coração de gente demais. Sua morte ainda é lamentada por muitos, em muitos lugares.
Fabia Vitiello de Azevedo